Tal como a primeira letra do seu nome mais famoso, Cunhal era sobretudo um homem de combate, ou melhor, um homem do contra: na sua essência e na sua acção. Contra a liberdade, contra a democracia parlamentar, contra o mercado, contra os ricos, contra a propriedade, contra o sector privado, contra a despersonalização do regime político, contra a tolerância política, contra a predomínio dos direitos individuais e cívicos sobre os direitos sociais e económicos, contra os meios.
Coerente? Corajoso? Comunista convicto? Sem dúvida, mas a bem de que valores e princípios e de que direitos e liberdades? As pessoas que são um todo não gostam de partes, não se preocupam com os tijolos de uma casa, com as mãos que as fazem no grupo de trabalhadores, com as vidas que as vão habitar no conjunto da localidade. O importante é o todo, o fim, a utopia. O tu só vale enquanto pertenceres ao nós. O diferente, o indisciplinado, o desobediente, o criativo não tem lugar no todo, porque está contra ele. O eu nada vale, somente o conjunto de eus importa, mas no sentido abstracto, para cumprir com os desígnios do escol dirigente, da superestrutura, da democracia do proletariado.
Para além de ser do contra, lembro Cunhal como um homem totalitário numa dupla dimensão: no seu saber e no seu sonho. No seu saber, porque era em si mesmo um centro de inteligência e de habilitações, dizem, que abarcava e apreendia, com instinto genial, matérias diversas de qualquer disciplina, de todas as áreas, das humanidades às ciências, das artes às letras, da cultura física às ciências da natureza. Era assim um homem renscentista, dos sete ofícios e qualidadedes. Por outro lado, sabia bem demonstrar esse todo, cultivava-o e a sua arte e saber configura-lhe o sonho, o sonho de uma sociedade igualitária, unificada, organizada, funcionalizada e planificada, nas políticas, na administração e na distribuição dos bens e serviços produzidos e alocados. Tudo em nome do Estado, o pai, o patrão e o patrono da vida do ser humano, da vida pessoal, profissional e familiar do indivíduo, cujo valor seria medido pela sua mão-de-obra, número colectivo, colaboração ou alinhamento.
Cunhal tinha assim o sonho de uma sociedade totalitária, e toda uma vontade de transformar Portugal num regime cunhalista, ou seja, popular, controlador, ablativo, em nome da ideologia, do proletariado, do povo. Não o povo como centro de poderes e deveres, mas o povo como instrumento de consagração de uma sociedade feita de 'nós', sem lugar para os 'eus', sejam alinhados ou dissidentes.
A diferença entre o salazarismo e o cunhalismo seria essencialmente de nomenclatura dos predicados: Deus, Pátria e Família, para um, Marx, Povo e Partido, para outro. Nenhum sobreviveu. E ainda bem. Portugal está mal, mas não está pior!
Uma das lições de Cunhal, para mim, resta no campo da demagogia e da perigosidade dos sonhos totalitários para a sociedade. Cunhal não sonhava para ele ou para Portugal, sonhava para que ele e Portugal fossem o mesmo, agissem da mesma forma, tivessem os mesmos valores, os mesmos princípios, os mesmos desígnios. A lição que fica, portanto, é conselho bem actual na contemporaneidade que vivemos, nacional e internacionalmente, pois ela ensina que, nas ideias e medidas políticas, não devemos confundir o todo com as partes.
NCR
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