domingo, 5 de junho de 2005
ESPUMAS IX
«Neste entalho do meu presente, desejava estar lá, agora, e assim terminava o dia como comecei, numa praia. As praias à noite não têm a beleza diurna, é verdade, falta-lhes iluminação, atroada e gente. Todavia, a noite toca tanto no mar como o dia. Simplesmente, na ausência da luz solar, das sonoridades motoras e dos vizinhos desembuçados na areia podemos ir mais fundo, exige-se ir mais adentro, conseguir virarmo-nos para nós próprios. Coisa rara hoje, apesar do megafonado individualismo. A beleza da noite é precisamente aquilo que nos impele a ver na escuridão, aquilo que há em nós. A noite é boa conselheira se soubermos reconhecer que o momento que ela nos proporciona é um momento de conhecimento, de inspiração, de renovação. Se o dia é o pai de todos os afazeres, a noite é a mãe de todos os prazeres. Aqueles prazeres que não são curtos nem calcadores, que não nos obriga a pedir algo em troca, que não nos põem caraças para sermos alguém. A noite faz-nos crescer, reflectimos sobre aquilo que o dia nos cegou e compele-nos ao ressarcimento das nossas culpas e desculpas, comede-nos os disparates antes inócuos, compromete-nos com o signo calmante do silêncio das estrelas. Agora, estranhamente, oiço três patos a esvoaçarem por cima da minha varanda, como eu estava a dizer, à noite o silêncio vem de cima, de lugar azul-escuro e de pontos brancos. À noite, há tempo para ouvir o que desejamos repetir. E rever. O dia hoje começou na praia, um lugar também ele azul-escuro e de pontos brancos. Um deles era eu, um ponto dos quatro costados daquela praia, no meio de uma nada original paisagem e de toda uma experiência irrepetível. Aquela praia começou há muito a ser o meu cupim. Mas é de dia que lá vou, é durante a luz que lá estou. Por vezes, manobro o dia à espera da noite. É um grande sinal de fraqueza. E de incompletude também. Não me chega o dia, pronuncio a vida com noite. De certa forma, sinto que todas as noites são um recomeço e uma luta, sei que já não regresso a nenhuma e sei que brigo para não as esquecer. Não é um combate entre o dia e a noite, é entre mim e o tempo. Não considero controlá-lo, e muito menos gastá-lo, o que eu queria, melhor, o que eu quero é, complexamente, voltar aos dias e noites que perdi e ao mesmo tempo que não cresci. Aceito recomeçar todas as noites e transpor a estafeta dos dias, preparei os meus lugares e os meus afazeres, olharei pela noite com a noite – melhor não é possível – e combaterei os inimigos do tempo. Só preciso começar os dias como gostaria de os pensar de noite. É um bom princípio. Como hoje, num lugar comum.»
NCR
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