sexta-feira, 12 de maio de 2006

ESPUMAS XXVII

- Sabes, já estou velho, embora mais sábio, como todos os velhos. E os velhos sábios, e conscientes, gostavam de transmitir aos jovens o caminho da felicidade, ou melhor, o caminho de vários caminhos, a verdadeira felicidade, aquela que só com a idade é reconhecida o seu valor; mas os jovens não os ouvem, assim como eles próprios, quando eram jovens, não valorizavam qualquer conselho ou opinião sobre um certo sentido de orientação das suas vidas. Quando somos novos, qualquer conselho é sinónimo de restrição á sua liberdade e vontade.
- E qual é esse caminho da felicidade?
- Antes de mais, convém teres noção de que o caminho da felicidade não é feito de momentos sempre felizes, porque a felicidade é um fim nem sempre presente em todas as estradas do seu destino. É um caminho que exige, por vezes, não pensar somente na actualidade diária. É importante ter esta noção, para que não se pense que estamos perante uma única via da plena ventura e fortuna, ou um segredo sagrado da felicidade ou mesmo um atalho facilitador e miraculoso para se chegar à felicidade.
- E o caminho é?...
- É tão simples que raros são aqueles que acreditam nele. Tão simples e tão conhecido, mas ainda assim de complexa integração no nosso comportamento.
- O avô seguiu-o?
- Com a tua avó sim, no amor consegui, depois de todas as tropelias que nos passam pela cabeça e das dificuldades que atravessámos. No resto, acho que também tentei sempre ser uma pessoa honesta, sobretudo comigo mesmo.
- Mas, avô, ainda não se referiu ao caminho, ou melhor, a um dos caminhos da felicidade...
– Pois o caminho, como é fácil desviar-nos dele, até falar dele. O caminho é seguires o teu coração, o centro de tudo o que somos, mas nem sempre o reflexo daquilo que fazemos.
- Seguir o coração é muito vago
- A falta dele ainda é pior.
- Para além disso, acarreta sofrer muito, vermos em nós o que não gostamos nos outros, ou mesmo acabar com as nossas ilusões ou sonhos de juventude!
- Tens razão, mas falta-te o resto de toda ela. Seguindo o coração, não sofrerás mais do que a sua alternativa, que é evitá-lo, jamais verás em ti o que detestas nos outros e, quanto às ilusões e os sonhos, bem, só posso dizer que se completares poucos e bons, e que sejam verdadeiramente teus, já cumpres uma vida feliz.
- Ir aonde o coração nos leva parece, de facto, simples, demasiado simples, mesmo…
- O receio e a insegurança tolha-nos por vezes a razão, mas é pior quando nos colhe o coração. Como vejo e oiço muitos da minha idade, eles e elas. Eu tive a sorte de seguir o meu caminho e, de alguma forma, sinto-me bem, julgo que é um grande passo para a felicidade. A imagem que muitos dos meus amigos me dão é terrível: deitados nas suas camas, martirizando-se com viagens diárias a décadas passadas, questionando, indagando, combatendo, precisamente essas ilusões e sonhos que não prosseguiram, depois de toda uma vida aparentemente abundante e recheada de pessoas e bens.
- Está a dizer que seguindo-se esse caminho que fala, a ilusão e a frustração não vem no final, ou seja, quando menos se precisa dela?
- É um pouco isso, e dá-nos a sensação que afinal de contas fomos sempre felizes. Diz-me, durante toda a tua ainda curta vida, reflectindo sobre o teu passado, as pessoas e as coisas que escolheste com o coração, não foram as mais importantes, independentemente do presente da tua relação com essas pessoas e bens?
- Foram as mais marcantes… e felizes, de facto, agora que me coloca a pensar nisso. Em todas as minha escolhas, por muito pequenas que tivessem sido, lembro-me delas como se ainda as vivesse hoje, o meu brinquedo preferido, os meus lugares, os livros, as raras paixões que tive, os momentos da sua realização, ainda que contra a racionalidade que estavam subjacentes a essas escolhas
- Actualmente, a razão tem uma grande aliada, quase inexistente no meu tempo: a ditadura da primeira oportunidade. Os tempos de hoje, como já deves ter-te apercebido, não oferecem segundas oportunidades. Na amizade, no amor, no desempenho profissional, não se pode falhar à primeira, porque raramente será dada uma segunda oportunidade. Não há tempo para o esforço, que dificilmente oferece bons resultados imediatos.
- Como diz um amigo meu quando saímos à noite, andamos a procurar ouro em lojas dos trezentos!
- De alguma forma, temos tudo ao nosso alcance, as pessoas são livres, por vezes nos limites com o livre arbítrio, tudo é barato, acessível, imediato, cómodo, indolor. Não há censura social para a desistência, a invocação da felicidade, paradoxalmente, serve também para a falta dela.
- As coisas ou dão ou não dão, ou dá prazer ou não se atura, ou sim ou sopas!
Tendo em conta o mundo que nos rodeia, e que de alguma forma vive em nós por interacção, acho que é muito difícil saber seguir o coração...
- O coração indica-nos o dever-ser, a razão apenas justifica a realidade e não explica o sonho. É a diferença entre o futuro e o presente, o eterno presente.
- Mas quem hoje pensa no futuro, avô? Nem com os olhos, quanto mais com o coração!
- Se o caminho fosse fácil, não era com certeza o da felicidade. E mesmo que o fosse, por miraculosas forças transcendentais, a felicidade tinha deixado de ser o que é hoje.
- Sim, mas é como ser-se honesto consigo próprio, o dia-a-dia em que vivo e trabalho, o comportamento e os objectivos das pessoas da minha geração já não têm nada que ver a ver com os do tempo do avô!
- Agora fizeste-me sorrir, mas não leves a mal. É que eu disse o mesmo ao meu avô e ele respondeu-me com a simplicidade que só a idade hoje me permite reconhecer e que te repito: «oxalá a tua vida culmine na velhice e descubras a razão do coração antes de lá chegares». Pouco mais te posso aconselhar, meu neto, mas asseguro-te, por muitas dúvidas naturais que tenhas quanto ao que te digo, também eu passei por elas. Contudo, esforça-te por aperceber-te que a história de gerações e gerações sucessivas será sempre corroborada pela nossa própria vida. O desenvolvimento económico, social, cultural, educacional, evolui ao longo dos tempos, é certo, mas as escolhas que os humanos faziam há dois mil anos são as mesmas de hoje. Todo o ser humano escolhe, na amizade, no amor, na família, no sucesso. A felicidade é também uma escolha, uma opção na dúvida. Assim como ouvir os velhos (sorriso).
- Eu oiço-o, sim. Disso não duvide!
- É um bom princípio. A felicidade não é uma ciência, nem é feita de palavras. Se fosse, bastava-nos um bom argumento para a atingir. E todos sabem, incluindo os jovens, o quanto isso é insuficiente.


NCR

1 comentário:

Pedro Soares Lourenço disse...

Gostei muito deste diálogo. Mas, como todos os outros diálogos em que assistimos em off – tem o problema de não podermos intervir numa conversa que nos parece tão agradável.
Por exemplo gostava muito de ter perguntado ao avô o que é essa coisa para onde ele conhece o caminho: a felicidade.