O desprezo pela vida humana separa mais os piratas somalis dos marinheiros americanos e europeus do que a desproporção no armamento que utilizam
Quando Vasco da Gama largou de Mombaça para cruzar o Índico e aportar a Calecute, teve duplamente sorte. Primeiro, porque havia meia dúzia de décadas que a imensa frota chinesa deixara de patrulhar aquelas águas. Depois, porque conseguiu evitar os ataques dos piratas que já nesse tempo frequentavam a costa da Somália e o Golfo de Áden. Porque, como notou o grande historiador francês Fernand Braudel, a pirataria tem sido um mal endémico no Índico e desde que os portugueses abriram as rotas comerciais entre a Europa e o Oriente que a sua actividade só diminuía quando algum grande império conseguia impor alguma ordem na região.
Nas décadas que se seguiram à II Guerra Mundial essa ordem era imposta por Estados cliente das duas grandes potências, os Estados Unidos e a União Soviética, mas um dos primeiros sinais de que a queda do Muro de Berlim não daria automaticamente origem a uma "nova ordem mundial" chegou-nos da Somália e do fracasso da intervenção internacional para repor alguma ordem naquele Estado falhado. Desses dias ficou-nos a imagem do cadáver de um marine seminu a ser arrastado pelas ruas de Mogadíscio, por entre aplausos da multidão, imagem que chocaria de tal forma a opinião pública americana que o Presidente Clinton traria rapidamente os soldados de regresso a caso, deixando a Somália entregue aos senhores da guerra.
Ora, como ontem escrevia Robert D. Kaplan, jornalista e ensaísta, num artigo no New York Times, "anarquia em terra significa pirataria no mar". E explicava porquês: "Os piratas somalis são habitualmente jovens desempregados que cresceram num ambiente de anarquia e violência e servem às ordens de um senhor da guerra local. (...) Estes piratas não sabem o que é o medo porque cresceram num ambiente cultural onde ninguém espera morrer velho." A sua missão é irem assaltando barcos cada vez maiores até conseguirem aproximar-se de um gigante dos mares e, ao sequestrá-lo, negociar um resgate milionário.
Não pode haver contraste maior do que entre o que estava em causa para aquele grupo de uma dezena de homens armados com armas automáticas e lança-granadas que fugiam num dos salva-vidas do porta-contentores que tinham tentado assaltar e os meios que foram lançados em sua perseguição que incluíam navios equipados com mísseis teleguiados, helicópteros e aviões da última geração, drones e tropas de elite, tudo para salvar o capitão do navio, Richard Phillips, um homem que se entregara para proteger a sua tripulação e cuja história encheu as páginas da imprensa americana nos últimos dias.
E o que é que isto significa? Que, como notou Kaplan, "os piratas, tal como os terroristas, podem atacar a maior potência mundial, apesar de assimetria de forças". Uma assimetria que começa na forma radicalmente diferente como se valoriza a vida nas sociedades modernas e nas sociedades onde a ausência de qualquer ordem ou uma qualquer ideologia radical as mergulhou de novo na barbárie. É essa assimetria no respeito ou no desrespeito pela vida humana que permitiu aos piratas desafiar com armas rudimentares o armamento sofisticado dos EUA até estes encontrarem uma forma de resgatar o capitão Phillips vivo.
Não será fácil lidar com estas novas ameaças que, para mais, podem estar a ser seguidas com atenção por organizações como a Al-Qaeda, que não desdenharia sequestrar um navio de mercadorias para o fazer explodir numa zona muito movimentada ou assaltar um paquete, seguindo o exemplo do Achille Lauro, capturado em 1985 por terroristas palestinianos. E não será fácil, pois a lei internacional coloca alguns limites à forma como se podem tratar a pirataria - e os piratas podem sempre apresentar-
-se como combatentes, pois a pirataria, como já dizia Braudel, "é uma forma secundária de guerra" - e a maior parte dos países não possui o tipo de barcos capazes de combaterem as pequenas embarcações utilizadas pelos homens que partem da costa da Somália, uma das mais extensas do continente africano.
Mas sem fazer essas escolhas concretizar-se-á a profecia de Robert D. Kaplan, alguém que ainda antes do 11 de Setembro escreveu um livro quase visionário, The Coming Anarchy: Shattering the Dreams of the Post Cold War. E qual é ela? "O facto de um número relativamente pequeno de piratas, para mais vindo de um país meio morto de fome, conseguir perturbar as mais importantes rotas marítimas do mundo é mais um sinal da anarquia característica do nosso mundo multipolar, no qual uma armada com as dimensões da americana vive num lento declínio relativo, ao mesmo tempo que falta aos outros estômago ou capacidade para ocuparem o seu lugar de forma a salvaguardar a segurança dos mares."
Ora, como a barbárie é mais contagiosa do que a civilização...
José Manuel Fernandes, Editorial, Público 13 de Abril, 2009
Um aplauso para José Manuel Fernandes. Deve ser um dos seus melhores textos de sempre.
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