Um criança tem ou não o direito de escolher os "pais"?
A pergunta não é tão pós-modernista como se poderá pensar. Pelo menos, desde Platão que a questão da paternidade de seres humanos é elevada a um problema da sociedade, e político, e sujeito a especulação filosófica. Hoje, o problema coloca-se motivado pelo consensual valor dos direitos das crianças, juridicamente plasmados, bem como pela grande receptividade, e acessibilidade, das pessoas a este tipo de problemas familiares, que se tornam da comunidade em geral, quando conhecidos por via dos diversos meios de comunicação social.
A reflexão não pode evitar preconceitos, experiências próprias, educações, formações e demais factores construtores da personalidade pensante de cada um, mas parece-me que há duas respostas complementares e compatíveis para esta questão, consoante as características do caso em concreto, reforçadas pela existência, desde os primórdios da Humanidade societal, de diversos tipos de pais.
Em regra, ou por princípio, a resposta à sobredita pergunta deve ser Não. Os filhos não têm o direito de escolher os pais. Os pais não se podem escolher, e refiro-me, naturalmente, aos "biológicos". À La Palisse, é impossível a qualquer ser humano escolher o pai biológico. O terreno da discussão, contudo, é deveras movediço para ser tão simples ou mesmo para se ficar por esta resposta. Basta avançar um pouco mais, e incluirmos os pais "maus" ou "bons", para que se entre num labirinto crítico e reflexivo de argumentos, divisor e concluso, como todos os labirintos. Exige-se assim a delineação de algumas fronteiras do próprio labirinto. Uma delas, é a definição de deveres mínimos para os pais e aquilatar se esses deveres são ou não cumpridos. A regra aqui é os deveres legais, independentemente dos vícios e das virtudes, das possibilidades e das necessidades, das fraquezas e das forças dos pais. Que são muitas no mundo actual, fortemente privatizado e publicitado. Para já, julgo que importa abrir algumas janelas responsivas que nem sempre vejo abertas. Para além da questão do Sim ou Não, algo maniqueísta, e da discussão de ficar com este ou aquele, um direito que deveria estar consagrado, e a legislação parece omitir nos pontos cardeais desta matéria, é o direito das crianças a ter mais do que um pai, sobretudo nas situações críticas do acolhimento e desenvolvimento da criança. Aliás, sendo a paternidade algo tão valorizada e marcante para um ser humano, quem recusaria ter mais do que um pai? Não é por acaso que milhões de crianças deste mundo consideram pai, a avó/avô, a tia/tio, a madrinha/padrinho, a madrasta/padrasto, etc..., seja por motivos de abandono, recusa, divórcio, morte, desconhecimento, incompatibilidade, etc... é um facto incontornável. Por vezes, até no parceiro se procura "o" pai e na parceira "a" mãe. De todas as classes sociais, de todas as gerações e idades, se pode encontrar no nosso meio de amigos e conhecidos pelo menos uma destas situações. E, contudo, a lei pouco ou nada reflecte isso, implicando com esse facto, omisso, a suposta falta de justiça de alguns casos, ou mesmo as polémicas intervenções de actores sociais e estatais nas decisões que, mal ou bem, comprometem o futuro da criança. Proibir-se uns pais de estarem com o seu descendente é, em princípio, algo de muito grave e marcante para ambos, de forma conscienciosa ou não pelos próprios. Obrigar uma criança a ter só uns pais, depois da violação sistemática e estruturada dos direitos dos filhos por parte dos pais é uma agressão humana que muito poucos conseguem lidar, mesmo para quem apenas vê ou ouve um noticiário.
A lei na família, historicamente, sempre foi pouco interventora e, de certo modo, esse deve ser o princípio estruturante desta relação. Todavia, a lei, em relação à realidade familiar, está ainda longe de ser actualizada. mas o problema não surge só agora, há séculos que ele perpassa a história da humanidade, que é rica, na vida e nos livros, em exemplos de como o "sangue familiar" (é uma metáfora, pois ele biologicamente não existe) é um mero veículo de concepção e não de criação. O mesmo se passa no mundo animal, para que se refute qualquer ideia "natural" desta matéria.
Portanto, nesta questão, tudo merece ponderação e vários são os momentos a que temos de dar opinião, para se chegar ao fim do labirinto da paternidade. Porque é de facto um labirinto. Para os pais, para todos os pais, para toda a sociedade humana. Esta, no século XXI, tem valores actualizados: o sucesso individual e profissional, a monoparentalidade, a erosão da autoridade, a liberdade familiar, a convivência periódica (não diária) dos filhos com os pais, etc. Há assim carências psicológicas que a lei não consegue suprir, nem deve. Mas a lei, a justiça, pode fazer algo que dificilmente outros farão por ela com a mesma força social: dar a uma criança, até mesmo a qualquer pessoa, a possibilidade de ter outro(s) pai(s), segundo cuidada e rigorosa casuística, e assim de lhe não ser negada a oportunidade justificada de ser um pouco mais feliz, havendo previamente pessoas que já o fazem. Ter outros pais não é ter um só pai, ou pais alternativos ou subsidiários, como parece ser a lógica de toda a legislação da família portuguesa (que acho-a justificada apenas para os casos criminosos). É haver outros pais complementares, com direitos e deveres. E estou mais do que convencido que a lei vai necessariamente caminhar para aí, mesmo que não seja na minha geração. Sem mais, pela constatação óbvia de que ela ocorre há décadas, de facto, na realidade social.
Nota: como notaram, não faço distinção de género nas palavras “pais” ou “pai”, excepto numa referência no post à conjugalidade.
1 comentário:
Excelente texto e oportuna reflexão.
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