terça-feira, 28 de novembro de 2006

Mário Cesariny

Consultório do dr. Pena e do dr. Pluma II

Dr. Pena -- Esperava-o mais cedo, meu caro dr. Pluma.

Dr. Pluma -- Sabe lá, tenho estado ocupadíssimo. Resolvi apurar a minha cultura. Tenho ouvido «O gosto pela música», do dr. Freitas Branco, na Emissora Nacional - 2.

Dr. Pena -- Constou-me que falam muito e que aqueles dois locutores interrompem os trechos, são uns tagarelas... É verdade que falam no meio da música?

Dr. Pluma -- Têm esse defeito, mas dizem coisas interessantes, muito profundas.

Dr. Pena -- Por exemplo?

Dr. Pluma -- Não vai sem resposta. Olhe, no outro dia, a locutora, referindo-se a uma peça de Schubert, disse: É uma verdadeira delícia, uma coisa encantadora. Deixe-me ouvir todo o andamento, apetece-me imenso. E sabe? a locutora faz perguntas muito pertinentes. Quer ouvir esta? As sonatas de Schubert são diferentes das de Beethoven, não são? (sic).

Dr. Pena -- Se me permite, eu direi que é uma pergunta impertinente. Até podia dizer que é uma pergunta que não se faz!

Dr. Pluma -- Quem sabe viver é o dr. Gaspar Simões. Nunca pergunta nada. Para ele, todas as coisas antes de o ser já o eram.

Dr. Pena -- Mais duma pessoa me disse isso, mas não compreendi bem porquê?

Dr. Pluma -- Então não ouviu aquela do «nouveau roman» ter existido antes de existir?

Dr. Pena -- Ah sim?

Dr. Pluma -- Nem foram os franceses que o criaram. Foi um português, muito antes. No século XVI ou XVII.

Dr. Pena -- No século XVII? Não acha exagero?

Dr. Pluma -- Pergunte ao dr. Gaspar Simões.

Dr. Pena -- Talvez apresentasse algumas razões, quem sabe?! De tempos e modos nunca se sabe bem, com estes escritores do passado actuais...

Dr. Pluma -- Disse escritores do passado actuais, dr. Pena?

Dr. Pena -- Disse. Nos meus esforços para acompanhar sigo de tudo um pouco; gosto, sobretudo, de estar atento à manifestação das gerações mais novas, não é bonito ficar para trás sem aviso, compreende...

Dr. Pluma (interessado) -- Diga sempre...

Dr. Pena -- Um jovem ensaísta publicou um artigo no jornal Diário de Lisboa...

Dr. Pluma -- Não diga! E quem é que ele alvejava?

Dr. Pena -- Pois isso é que me faz espécie... Não era só a um ou dois escritores que ele destinava a sua diatribe, era a quase todos os que é costume designar como neo-realistas...

Dr. Pluma -- I see... Admito agora aquela sua expressão «escritores do passado actuais»... Mas, c'os diabos, então um escritor não pode mudar de estilo? Adaptar-se a novos modus faciendis? Barbear, pentear?

Dr. Pena -- Todos ao mesmo tempo, talvez não. Parece mal aos que ainda não estão suficientemente maduros para, por seu turno, mudarem também. Mas reconheço que a acusação é um tanto excessiva.

Dr. Pluma -- Pois é claro que o é; que seria das letras se não as aprimorassem! Se não as fizessem virar do avesso quando o direito deu o que tinha a dar! Até à próxima, insigne rr. Pena! Os meus melhores sentidos ao dr. Pincel!

Dr. Pena -- Serão entregues, meu preclaro amigo! Até para o mês que vem!

in Mário Cesariny, "Primavera Autónoma de Estradas", Lisboa: Assírio & Alvim, 1980, pp. 127-129

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