quarta-feira, 2 de maio de 2012

1.º Pingo de Maio

A notícia secreta do feriado de ontem… "Era uma vez, no primeiro dia de maio, um supermercado chamado de Pingo Doce ofereceu 50% de desconto em compras superiores a 100€..." pode ser o início de qualquer coisa, pode vir a ser mesmo o grande primeiro acto de outras semelhantes (talvez um dia o “Dia do Trabalhador” seja substituído pelo “Dia do Consumidor”), mas este post vai ter outro enfoque, menos lucrativo é certo, que é a “moral” da narrativa comunicativa com que é tratada. A história ocorrida ontem, numa espécie de "1.º Pingo de Maio" constitui um excelente exemplo de como as narrativas são actualmente mediáticas, globais, sistémicas e, crescentemente, “primárias”. Tornam-se assim facilmente fenómenos de "comunicação". No caso em apreço, relacione-se, por exemplo, o meio de publicitação mais antigo do mundo - o "boca a boca" - hoje tecnológico, e a radical afluência e comportamentos dos interessados. Nada do que ocorreu ontem deveria ser surpreendente, excepto, talvez, os atropelos ao civismo. Na verdade, todos os actores (empresa, empresários, consumidores, trabalhadores) ajustaram as suas escolhas com base em necessidades e preferências que são justificadas pela racionalidade, sobretudo os consumidores (quem rejeita um desconto de 50%?), e potenciadas pela crise económica e social (como podem as classes mais pobres desperdiçar esta oportunidade de comer e beber - de “consumir” - mais e melhor?). A principal ordem de críticas ou de julgamentos é a que assenta na falta de dignidade por se estar em "filas gigantescas", "dentro e fora do supermercado", "com outras centenas de pessoas", "perdendo-se muitas horas", por um "mero desconto de 50%", restando a final um supermercado com "repositórios de produtos vazios", cenários portanto de um país típico do "terceiro mundo". Tudo isto vi e/ou ouvi, e é razoável perguntar-se: é falta de dignidade estar-se numa fila horas a fio com outras pessoas e pagar nos termos legais? E no Natal, a pagar sem desconto, é mais digno? E se fosse para inscrever um filho num colégio privado, é diferente?! Os media foram terrivelmente cínicos, mas pergunto se é mais digno estar horas a fio para participar num “Ídolos”ou fazer de figurante numa telenovela ou num evento publicitário, eventos que os media tanto tentam enobrecer e valorizar? A falta de dignidade parece-me ser mais falta de realismo de análise de como o mundo e as preferências individuais mudam, tanto quanto a imutabilidade das necessidades primárias do ser humano, sendo a primeira a de sobreviver. Admito que nem todos tiveram escolhas racionalizadas, mas o que sobressalta desta história é também a falta de liberdade de escolha e residualmente uma certa pobreza de espírito. Mas com sacrifícios notórios aplicados a milhares de pessoas só a falta de escolha parece ser a razão mais plausível e ascendente. Se se concorda ou não, se se julga que todos deveriam lá estar ou faltar, parece-me aqui irrelevante. Facto é que, objectiva e serenamente, esta "moral" ou realidade não é nova, e veio reforçar a fragilidade dos nossos dias, demonstrar o quão rápido e móvel podem ser os comportamentos das classes médias e baixas e a tomada de consciência individual e colectiva, mediática e política, dos cidadãos deste país que vivem com muitas dificuldades diárias e sem discursos de esperança sobre o seu futuro, e que mesmo a trabalhar nesse dia ou na madrugada do dia seguinte não puderam dar-se ao luxo de deixar de estar nas "cheias" de um supermercado no primeiro dia de maio. Parece-me que nesta história a sujeição ao sacrifício de um desconto de 50% é tanto um privilégio dos mais pobres, quanto a declaração de falta de dignidade é uma prerrogativa dos mais abastados. E se alguém pensa que está livre de estar numa fila à 1.º Pingo de Maio, pense outra vez e agora, enquanto só tem efeito moral!

4 comentários:

Pedro Soares Lourenço disse...

Excelente post Nuno, a descentrar o debate das “ideologias” e das demagogias focando na Dignidade da Pessoa Humana que no fundo é (ou devia ser) o que realmente conta.
Abraço!!

Pedro Figueiredo disse...

Estou totalmente de acordo, até porque penso da mesma forma. Além de todo o filme de terror que fizeram, a comunicação social sublinhou e deu ainda cobertura e ênfase a esta situação... estes entrevistaram pessoas e políticos sobre esta manobra. No entanto esqueceram-se de perguntar aos mesmos sobre todas as outras pessoas que estavam a trabalhar nesse dia.

Pois o dia 1 de Maio pode ser o dia do trabalhador mas no entanto este acaba por ser um feriado como outro qualquer, o motivo de celebração e o seu simbolismo é que mudam. E tal como nos outros feriados trabalha-se, há quem fique em casa e há quem trabalhe, depende do ramo, mas a imprensa esqueceu-se convenientemente de todas as pessoas que sempre trabalharam neste dia de forma a garantir certos serviços.

Alguns como exemplo: Postos de abastecimento, serviços de apoio ao cliente, cafés, restaurantes, lojas, centros comerciais, portageiros, técnicos de serviço, metro, comboio, jornais, televisão, radio etc... muitos destes serviços tiveram que ser garantidos apesar do dia em questão.

Mas claro o mais grave foi mesmo o pingo doce ter feito o que fez... ou seja ajudar o povo, eu e muitos outros. Foi pena ter sido no dia 1 de maio, desta forma foi retirada grande parte do protagonismo dos partidos que apoiam estes eventos... muitas pessoas aproveitaram (e bem) assim este dia para realmente fazerem compras que precisam em vez de estar a dar ouvidos a políticos que falam mal apenas porque fica bem ser do contra.

Parabéns Nuno... muito bom!

trufas disse...

ótimo blog, parabéns...

LE disse...

Bom post!
Pena é, não aparecerem com mais, frequência :-)