…Onde está a austeridade! E é vê-los desesperados a fugirem deste policy virus como outrora se fugia da PIDE. Hoje, os militares dizem publica e convictamente que não são funcionários públicos, os juízes dizem que não são funcionários públicos, os funcionários parlamentares argumentam sempre que podem que têm um estatuto diferente dos funcionários públicos, os professores universitários não são funcionários públicos sempre que não há interesse, o próprio actual secretário de estado da administração pública, trabalhador do Banco de Portugal, num evento académico, apresentou-se desde logo como alguém que não pertencia à função pública… face ao exposto, é legítimo perguntarmo-nos onde, que raio, se pode encontrar um funcionário público?
A resposta pode ser simples: em lado nenhum! Porque a expressão “funcionário público” foi morta pela lei fundamental portuguesa na revisão constitucional de 1982, ao mudar a expressão ‘funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas’, constante do primitivo artigo 270.º, n.º 1, para ‘trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas’, do novo artigo 269.º. O objectivo era duplo: acabar com a redução do “funcionário público” a um mero elemento integrante do aparelho administrativo sem “igualdade laboral”, por um lado, e de abranger o sentido amplo da expressão material de “trabalhador”, substituindo-se assim o conformador critério orgânico-formal, pelo critério material-funcional, embora ambos tutelados por direitos e deveres, gerais e especiais, por outro.
A extrema-unção da expressão e significado de “funcionário público” foi dada em 2008, pela denominada LVCR (o Código do Trabalho do sector público), que veio matar de vez as réstias discursivas e interpretativas deste conceito jurídico (ainda avulso em algumas leis e regulamentos, embora sempre bem actualizados e assimilados há muito pela jurisprudência constitucional).
E o que mudou com a LVCR? Várias coisas, mas destaco estas: primeiro (abordagem jurídico-funcional), quem trabalha no Estado é “trabalhador que exerce funções públicas”, independentemente da modalidade de vinculação ou da relação jurídica de emprego público (nomeação, contrato, comissão de serviço tarefa, avença, etc); segundo (abordagem subjectiva), dentre estes trabalhadores há “funções” que têm leis especiais, mas mesmo estas estão sujeitas a certos princípios basilares da LVCR, incluindo os trabalhadores (as leis que lhe são aplicáveis) do sector empresarial do estado; terceiro (abordagem objectiva), todos os serviços e organismos da administração directa (por ex.: ministérios), indirecta (v.g., institutos públicos), regional, autárquica, serviços e órgãos de apoio aos demais órgãos de soberania (Presidente da República, Assembleia da República, tribunais, Ministério Público, autoridades independentes, etc.).
Ou seja, a dúvida instalada versa mais sobre a distinção entre função pública e funções públicas, do que propriamente sobre quem é “funcionário público”, pois estes extinguiram-se! A admitir-se a gíria da expressão, à força ou por simplificação, então “funcionário público” hoje é quem “exerce funções públicas”, que para além do suporte literal, tem apoio jurídico. Se se quiser abusar das interpretações do actual “conteúdo” da expressão outrora “funcionário público”, então os corpos profissionais que mais dela se aproximam são precisamente os militares, juízes, funcionários do Banco Portugal e afins, cujos estatutos laborais especiais são do que há mais próximo do regime do antigo “funcionalismo público”, maxime com a manutenção generalizada da vinculação de “nomeação definitiva”, não fazendo, pois, parte dos cerca de 400.000 “ex-funcionários” que passaram a “contratados” em 2009! Curioso, não?
Traduzindo, grosso modo, se se quiser encontrar regime de função pública à antiga, tem de se procurar nos tribunais, nas forças armadas, nas polícias ou inspecções, porque dois terços dos trabalhadores do Estado são trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas! Se se é tão “rigoroso” para as expressões antigas, então que não se perca o sentido actual, ou pelo menos o mais próximo. Aqueles que se dizem não ser “funcionários públicos”, já agora, que não se esqueçam de também referirem que não são “funcionários públicos” para efeitos de dependência orçamental, segurança no emprego, regime da duração semanal do trabalho, disciplina deontológica e dos deveres laborais, regime de protecção e benefícios sociais (ADSE, CGA), etc, pois não se pode fazer depender a submissão laboral ao regime das funções públicas dos interesses à la carte dos corpos “especiais” da função pública. A lei laboral não é uma lei do consumidor.
Concluindo, nas relações de trabalho do Estado, jurídico-formalmente, o conceito de funcionário público morreu, não existe. E o sentido actual de “função pública” (separado do originário função da administração pública) só é distinguível, em rigor, da expressão “função política”, dada a prevalência do critério material-funcional, com suporte jurídico-formal. E convém recordar que também já não se pode dizer que existe uma só administração pública, há várias, algo reconhecido pelo actual estado e por toda a União Europeia e demais instituições internacionais, sobretudo na área laboral pública. O Banco de Portugal sabe disto muito bem, pois está incluído nelas, como bem assume em todos os relatórios económicos que produz. Rejeitar a própria identidade para não sofrer as consequências da sua pertença, lembra-me certas personagens bíblicas, mas mesmo nos idos antigos austeridade não era necessariamente antónimo de seriedade ou de ilegalidade.
3 comentários:
Estou aqui
Gostei deste post!
De facto, de repente, vai-se a ver e até é capaz de haver pc FP :-)
Eu sou. Tnho orgulho no serviço que presto e, se puder, farei todos os dias melhor!! Ahh, ainda falta acrescentar, não pertenço a nenhum partido político!
Já nao estou aqui...
Arcádia=linguas de gato?!...
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