domingo, 20 de janeiro de 2008

É um prazer ler este Senhor

No Público (peço perdão pela 'delação'), hoje, N' A Casa Encantada:

«"A obediência e a lei", por João Bénard da Costa

Vão chuvosas as Janeiras. Sábado passado choveram-me com mais força, e nem sequer me deixaram aparecer no PÚBLICO. Passo a contar.Vão chuvosas as Janeiras. Sábado passado choveram-me com mais força, e nem sequer me deixaram aparecer no PÚBLICO. Passo a contar.
No PÚBLICO desse dia, Francisco Teixeira da Mota, magnífico barómetro, contou a história do genro e da amiga, a que eu prefiro chamar a história do João.
Com a devida vénia, resumo para quem não leu, embora recomende vivamente o original. Era uma vez três: o João; uma rapariga nada de se deitar fora; e um homem casado mas de carne fraca. De comum, o facto de os três trabalharem na mesma empresa. O João como empregado subalterno, a rapariga como quadro médio e o homem como quadro superior, com o picante suplemento de ser marido de uma das sócias-gerentes da tal empresa.
Sucedeu que o João abriu um dia uma porta que aberta não devia ser e viu atrás dela a menina e o senhor enlevados em doces carícias.
O João conheceu nessa tarde o dilema conhecido como o dilema do Conde de Abranhos. Calar-se e ser culpado de cumplicidade com infractores ou denunciá-los corajosamente?
Como a personagem de Eça, o João optou pela segunda. Foi dali contar ao patrão o que vira. E o genro e a amiga, para me servir dos termos rigorosos de Francisco Teixeira da Mota, que até aqui tenho estado a interpretar liberrimamente, o genro e a amiga, dizia eu, foram riscados da empresa perpetuamente. O João teve a merecida promoção. Só que os tempos já não são os de Eça.
Do olho da rua onde os puseram, os despedidos recorreram à lei. O João tinha-os difamado e afectado na sua vida profissional e privada. Na primeira instância, não conseguiram nada, já que o tribunal achou que "o João tinha agido no exercício de um legítimo dever". Recorreram para a Relação, neste caso do Porto.
Teixeira da Mota debruça-se com merecido desvelo sobre o acórdão da Relação.
Recordando, embora, que "nos tempos que correm", do ponto de vista da moral, "os costumes já não são tão rígidos como em tempos o foram", os três desembargadores debruçaram-se sob a magna questão de saber se eram legítimos os interesses que o João servira quando contou a história ao patrão.
E aí acharam que não só eram legítimos como legitimíssimos. Porque: a) o par estava a usar o seu tempo laboral em actividades que de laborais nada tinham. Logo, estava a prejudicar, não só o patrão, como a empresa e os trabalhadores desta, incluindo o João. Se toda a gente, naquela instituição, andasse aos beijos e abraços em vez de trabalhar, a falência não se faria esperar muito e o João, mais dia, menos dia, ficava no desemprego. O que o João viu não foram só beijinhos: foi uma "infracção disciplinar laboral" passível "de ser sancionada disciplinarmente". Calando-se, o João estaria talvez a ser leal com os colegas infractores, mas estaria com certeza a ser desleal para com a entidade patronal. Ora quem põe lealdade com colegas acima da lealdade à instituição, está a cometer erro gravíssimo, senão crime. "O dever de lealdade para com a entidade patronal impunha-lhe que a informasse dos factos que tinha presenciado" e agora estou a citar ipsis verbis a Relação do Porto. Consequentemente, o processo contra o João foi arquivado e este tem na sua frente o brilhante futuro que tão excelso cumprimento do dever certamente lhe assegurará.
Se, para aqueles que leram Teixeira da Mota, e me estão a ler a mim, os fiz perder tempo com uma história que já conheciam, foi porque eu próprio a tive que ler duas vezes até me convencer que, no meu país, a 19 de Dezembro de 2007, três desembargadores da Relação do Porto enalteceram desta forma o "cumprimento do dever de lealdade" por parte do João.
Há 45 anos, nos tempos de Salazar e da Pide, dos informadores e das censuras, o António Alçada Baptista gostava de contar a história do Horácio, que mandou gravar sobre a sua campa o seguinte epitáfio: "Aqui jaz Horácio. Posto perante os dilemas mais difíceis, disse sempre sim com firmeza. A obediência às leis, mesmo as mais injustas, foi timbre do seu carácter. Para servir, tudo sacrificou, até a sua consciência."
Há 45 anos ouvíamos isto e pensávamos que havíamos de ver o dia em que não houvesse nem Horácios nem Joões, em que as consciências se libertassem. Esse dia chegou - diz-se e até eu tantas vezes o disse - há quase 34 anos. Voltámos à mesma? Não convém generalizar, mas quando leio a história do João e dos juízes sobre o comportamento dele, sinto um certo frio nas costas. Do género do que sinto quando me juram que todos os dias a ASAE recebe centenas de chamadas ou mails com os nomes e moradas de infractores à lei do fumo ou da simples suspeita de infracções à lei do fumo. A lei é para se cumprir, dizem-me, com o mesmo timbre do jacente Horácio.
Vi muitos filmes. E vi muitos filmes (sobretudo americanos) em que um só indivíduo, um Senhor Smith qualquer, sob a aparência de Gary Cooper, Henry Fonda ou James Stewart, dedicava a vida a lutar contra uma lei injusta. Ao princípio, quase sem apoios. Depois, com alguns. Muito depois, com muitos. Até que a lei iníqua era revogada e ele tinha dado o seu contributo a algumas frases bonitas dos founding fathers ou de Abraham Lincoln. Situações dessas em Portugal são altamente improváveis. Quer na ditadura, onde por cada resistente havia dez bufos, quer em democracia, onde os chamados "direitos das minorias" foram sempre figura de retórica e onde todos estamos vinculados, de uma maneira ou de outra, "ao dever de respeito para com a entidade patronal", entende-se por respeito, o silêncio, a hipocrisia ou a delação. "Tinha a obrigação de me ter dito" foi e é mandamento muito mais imperioso do que "tinha a obrigação de nada ter dito", sobretudo a mim, seu "legítimo superior", com "legítima faculdade" de punir comportamentos que eu não tinha nada que saber, e sobretudo de saber por terceiros. Mas sempre por terceiros se mandou neste país, e não é na minha vida, e com as histórias do pão nosso de cada dia, que vão mudar os Joões e os patrões dos Joões.

"Vão chuvosas as Janeiras" comecei por dizer, embora fosse nelas que me aconteceu ver muito mais luz que em qualquer outro dia. Mas os milagres que acontecem a cada um não são para aqui chamados, ou são chamados de outra maneira. A verdade é que todos nós sabemos que, a partir da meia-noite de 1 de Janeiro, mais uma prática - legal e legalizada - foi proibida e para alguns (alguns ou muitos não interessa) um pequeno prazer se transformou num novo interdito.
Mas valha a verdade e a objectividade, que temos que reconhecer que a nossa civilização (ao menos no mundo judaico-cristão) se funda sobre uma proibição e sobre uma desobediência à lei.
Milhares ou milhões de livros se tem escrito sobre o chamado "pecado original" e sobre a expiação pela humanidade de umas trincadelas numa maçã, dadas por um casal de nudistas. Mas, para mim, o maior mistério nem é esse. O maior mistério é que Deus, após ter criado varão e varoa e os ter posto na horta do Éden com "várias árvores desejáveis à vista e boas para comida" lhes tenha dito: "De toda a árvore da horta comendo comerás. Porém, da árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, morrendo morrerás" (Gen, II, 16-17).
No seguinte capítulo desta mesma história, diz-se que a serpente "por ser mais astuta" é que começou a espicaçar a mulher. Não vejo necessidade dessa astúcia. Se não tivesse havido uma proibição, ela não seria necessária. Quando Deus exceptuou, dos frutos de todas as árvores daquela horta, os da árvore que estava no meio dela, criou a primeira proibição - a proibição primordial - e consequentemente o desejo de a transgredir. "E viu a mulher que aquela árvore era boa para comer e um prazer aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; pelo que tomou do seu fruto e comeu; e deu também a seu marido, e comeu com ele" (Gen, III, 6).
Se Deus nada tivesse dito...? Se Deus não tivesse aberto a excepção...? O livre arbítrio e tudo o resto? Sim sim, pois pois. Só que o arbítrio não me parece tão livre quando está condicionado, quando é dado tudo menos uma coisa, quando tudo é permitido menos uma coisa.
Como é sabido, não foi só no Génesis que esse interdito fundamental e fundador se pronunciou. Quase todas as mitologias conhecidas contam uma história equivalente. Por proibições semelhantes ficou Prometeu agrilhoado com os fígados à mercê da águia, ou consentiu Epimeteu na abertura da caixa de Pandora.
Se da origem das religiões passarmos para as do nosso "inconsciente colectivo" e dos contos de espantar com que se encantaram as crianças desde que o mundo é mundo até que deixe de o ser, em todos eles encontramos esse malfadado tabu. Generoso, o Barba Azul confiava às sucessivas mulheres os mil aposentos do seu castelo e as mil chaves que os abriam. "Só neste quarto não poderás entrar. Só nesta chave não poderás tocar." Invariavelmente, era esse o quarto e era essa a chave que cada mulher queria ver e queria usar. E assim se perderam todas, como Orfeu perdeu Eurídice por ter olhado para ela quando não podia olhar, como Eco perdeu Narciso porque só podia fazer brevíssimo uso da voz, como Isolda perdeu Tristão ao beber do filtro, como Lohengrin voltou ao cisne quando Elsa o obrigou a dizer-lhe como se chamava.
Cem mil vezes ou cem mil milhões de vezes, em todas estas histórias e em milhões de outras que são variações da mesma, nos perguntamos porque é que, perante o quase tudo, todas ou todos quiseram, mais do que o tudo, esse quase que lhes era vedado. Mas perguntamo-nos também que quase foi esse, que mereceu castigos tão incomparáveis com o delito. As interpretações correntes apontam para a desobediência, para a falta de fé na lei divina ou humana (Abraão como figura contrapolar de Adão, aceitando tudo de Deus, mesmo o mais inverosímil). Mas o mistério maior está na excepção à regra, excepção imposta por uma vontade que com ser vontade se bastou. Proibido proibir, dizia-se há 40 anos, nos idos de 68. Se esse fosse o mandamento constitutivo da nossa espécie, a história desta mesma espécie seria bem diferente.
É melhor (ou é pior) que nos fiquemos pelos Joões, tão longínquos frutos dela?»

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