Dois artigos insuportável e insolentemente lúcidos no Público deste fim de semana. Para ler e reflectir por todos aqueles que amam o nosso querido clube.
[Com a devida vénia ao nosso António, tomo a liberdade de guardar tais escritos na caixa de comentários deste post, para memória futura]
2 comentários:
Benfica, um case study (parte I)
26.04.2008, António Pedro Vasconcelos
Quando, no fim da época de 92/93, ganhou a Taça de Portugal, num jogo memorável em que venceu o Boavista por 5-2, o Benfica tinha uma equipa de luxo, onde jogavam nomes como Paulo Sousa, Schwarz, João Pinto, Futre e um jovem de 20 anos chamado Rui Costa. Depois de uma vitória e uma exibição tão convincentes, o futuro número 10 da Fiorentina, que sempre sonhou acabar a carreira erguendo uma Taça no Estádio da Luz, não sonhava, por certo, o que vinha aí. Em poucos dias, a equipa desfez-se. Futre, em fim de carreira, rumou ao Marselha; Paulo Sousa e João Pinto, duas jóias da coroa, e Pacheco, um extremo que dava sempre jeito ter no banco, transferiram-se, sem pudor, para o rival de Alvalade, perante a impotência do presidente Jorge de Brito, alegando salários em atraso. João Pinto ainda voltou ao clube, após uma aventura rocambolesca em que participou Valentim Loureiro, e viria a ser o seguro de vida da equipa durante uns anos, acabando por ir, também ele, para o Sporting, depois de ter sido tratado como uma mercadoria descartável por um presidente de má memória, João Vale e Azevedo.
Um ano depois, Rui Costa partiu, por sua vez, para Itália, onde jogou até ao ano passado. Primeiro em Florença, onde foi venerado como um Medici, depois no grande A.C. Milan, e voltou agora ao Benfica para cumprir um sonho: ajudar o seu clube a ser campeão. Rui Costa foi um dos mais geniais jogadores portugueses de todos os tempos, quiçá o melhor da sua geração, um daqueles artistas, como eram Platini ou Maradona, que nos dão a impressão de que o futebol é uma coisa simples, um jogador que pensa e executa ao mesmo tempo, com a vantagem de pensar antes de nós e de saber o que fazer antes dos outros.
No Milan, ofuscado por Kaká, que viria a ser um dos maiores jogadores do mundo, "o maestro" perdeu a oportunidade de mostrar o seu talento com a regularidade que transforma um simples jogador num craque. Afastado, entretanto, da equipa nacional por António Oliveira na vergonhosa campanha do Oriente, preterido por Deco (que fazia parte da equipa ganhadora de Mourinho), no Euro 2004, Rui Costa acabou por não dar à selecção tudo o que podia. Saiu pelo seu pé, mas com uma indisfarçável amargura. E agora que voltou ao seu clube para ganhar tudo, assiste, impotente, ao desmoronar de um sonho.
O que se passou com o Benfica durante estes anos é um case study. Como é possível um clube que ganhou duas Taças dos Campeões Europeus, 31 campeonatos e 24 Taças de Portugal, que tem o maior número de sócios do mundo inteiro e adeptos da Patagónia ao Alasca, de Timor ao Canadá, tenha desbaratado o seu prestígio em apenas duas décadas?
Vale a pena avivar a memória. Com a eleição de Manuel Damásio, o Benfica ganhou o campeonato, em 93/94, depois de uma vitória épica em Alvalade, por 6-3. Damásio era um homem com boa vontade, mas pouca experiência, que se viu à frente de um clube maior do que ele. Depois desse jogo que lhe deu o campeonato teve a brilhante ideia de despedir Toni, o artífice da vitória, para ir buscar um treinador em declínio, mas mitificado pela imprensa, que, após uma inglória passagem por Paris, veio buscar refúgio no clube da Luz, onde havia jogado nos gloriosos anos 60: "O Rei Artur", como lhe chamava A Bola, encarregou-se, em pouco mais de um ano, de destruir a equipa, fazendo do clube a maior placa giratória de transferências de que há memória, perseguindo os jogadores talentosos e promovendo a mediocridade. Acabou por ser corrido, mas o mal estava feito: uma equipa esfrangalhada e um clube pelas ruas da amargura.
Damásio foi incapaz de se aperceber a tempo o que tinha mudado na economia do futebol: os direitos das transmissões desportivas, por via do cabo e do satélite, com a avidez dos operadores de TV, a importância dos sponsors e as transformações dos clubes em SAD, cotados em bolsa, à mercê de uma OPA. E, sobretudo, não se apercebeu que o poder, no futebol, se tinha deslocado para o Norte.
Impotente perante o descalabro que se seguiu, Damásio antecipou a saída, deixando o clube à mercê do primeiro aventureiro. Com um discurso populista e promessas vazias ("Um Benfica à Benfica" e "Um escudo é um escudo"), Vale e Azevedo apresentou-se como o D. Sebastião, agitando a ideia de que ia afrontar o poder do Norte, chegando a admitir que lhe chamavam "o Pinto da Costa vermelho".
Vale e Azevedo era o candidato da SIC, que perdera os direitos desportivos para o novo poder emergente - a Olivedesportos - e tentava recuperá-los para o cabo; para isso, necessitava de alguém sem escrúpulos que denunciasse os contratos livremente assinados pela direcção anterior. Graças à SIC, Vale e Azevedo manteve-se no poder mais do que o provável, e só deixou o clube quando a TVI, subitamente mais poderosa do que a estação rival, graças à popularidade do Big Brother, investiu na candidatura de Vilarinho. Pelo caminho, ficaram três anos de miséria, vergonha e descalabro, com assembleias gerais que envergonham o passado democrático do clube.
Enquanto o Benfica se afundava numa espiral de instabilidade, decadência e desorientação, Pinto da Costa, o obreiro do milagre de transformar um clube regional numa equipa europeia, ia montando a sua teia de influências, trazendo, com uma persistência invulgar, o poder do futebol para o Norte e manobrando habilmente para colocar os seus homens nos postos-chave de decisão.
Ao contrário de Vale e Azevedo, Vilarinho era a imagem de um Benfica sério e competente. Mas o Benfica parece ser um caso de masoquismo. Um novo vento de insanidade apodera-se dos dirigentes: o presidente deixa sair Mourinho e perde, mais tarde, a hipótese de o recontratar; e, como se não bastasse, sob a pressão dos resultados, despede Jesualdo - precisamente os dois treinadores que, nos anos seguintes, devolvem os títulos, o prestígio e a força ao FCP. Se isto não é um case study, é, pelo menos, uma rajada de metralhadora em ambos os pés.
Benfica, um case study (parte II)
27.04.2008, António Pedro Vasconcelos
É neste quadro que Luís Filipe Vieira, depois de ter sido o homem do futebol no consulado de Vilarinho, chega a presidente do clube. Vieira tem obra feita - um estádio moderno e confortável - e promete um centro de estágios, 300 mil sócios e o regresso da glória. Sem experiência no futebol, foi buscar um homem, José Veiga, que aprendera os meandros do futebol com Pinto da Costa, e que queria "matar o pai". Durante três anos, colheu resultados: Veiga consolidou uma equipa-base, disciplinou o balneário, adoptou uma linguagem agressiva que devolveu confiança aos adeptos e aos jogadores, protegeu os treinadores. Goste-se ou não do estilo, a verdade é que o Benfica estava no bom caminho: um campeonato, com Trapattoni, uma presença honrosa na Champions League, com Koeman, e, na época seguinte, com Fernando Santos, um campeonato disputado até à última jornada, mas, sobretudo, uma filosofia e um modelo de jogo que o clube há anos já não conhecia.
Quando o clube parecia estar, de novo, no bom caminho, a vertigem suicidária apoderou-se outra vez da mente dos dirigentes: depois de perder o campeonato em dois anos seguidos, Vieira achou que o paquete estava a afundar-se; e, em vez de reunir as tropas e manter o rumo, preferiu insultar a tripulação, enforcar o piloto e prometer um milagre. Os adeptos mais impacientes, que aclamaram Camacho, e uma imprensa servil, que o idolatrou (como haviam aplaudido e idolatrado Vale e Azevedo), aplaudiram as decisões de Vieira e agora insultam-no como se, na altura, não tivessem sido cúmplices das suas escolhas.
Vieira fez o impensável: em plena pré-época, vendeu Simão por um valor abaixo da cláusula de rescisão, perdeu displicentemente Miccoli e Manuel Fernandes, desautorizou publicamente o treinador, deixou sair José Veiga, e, no dia em que começava o campeonato, estava em Espanha a conspirar com Camacho; depois, ofereceu aos sócios em delírio a cabeça do treinador, fazendo dele o bode expiatório dos seus erros. A seguir, com um discurso populista, multiplicou as promessas miríficas e gratuitas, ofereceu mais quatro jogadores ao seu amigo espanhol - ele que dizia que o plantel tinha soluções a mais! - e, num acto solipsista e arrogante, chamou a si as responsabilidades todas do futebol do Benfica. A partir daí, passou a ser um homem sozinho. E, com isso, deixou, por sua vez, jogadores e treinador desprotegidos, enquanto acenava com a bandeira do Apito Dourado sempre que precisava de disfarçar a incompetência, as derrotas e a desorganização.
Quando as coisas começaram a não correr como previsto e os resultados não apareciam, Vieira tirou da cartola o seu ás de copas: Rui Costa estava a "ser preparado" para vir a mandar no futebol na próxima época, sem perceber que, com esse anúncio, se arriscava a queimar um ídolo e a lançar para o balneário um clima de instabilidade. O desentendimento entre Luisão e Katsouranis, dois jogadores exemplares, em pleno campo, não foi mais do que o reflexo do que se passava nas cabines.
Mas Vieira fez pior: arrastou a negociação do passe de Rodriguez e a renegociação de Léo, dois jogadores-chave, ao longo dos meses, andou pela América Latina, ele próprio, a tentar contratar mais jogadores - e voltou com as mãos vazias. Depois, em plena época, trouxe dois jogadores dispensáveis (Makukula e Sepsi); e, quando já não havia mais nada a fazer, viu partir o amigo Camacho com alívio. Quando já tudo estava perdido, lançou o bravo Chalana às feras, prometendo que o ia deixar trabalhar e que nada faria antes do final da época; que seria Rui Costa a escolher o novo treinador e a equipa técnica; mas ia tratando de contratar Ruben Amorim, Jorge Ribeiro e Geromel.
O Benfica, é bom que se diga, é vítima do seu sucesso: durante anos, sucederam-se presidentes ingénuos ou oportunistas, incompetentes ou vigaristas. No caso de Vieira, reconheçamos que fez tudo o que era preciso para devolver ao clube a credibilidade financeira e a imagem de uma empresa sólida e moderna. Mas falhou no essencial, naquilo que era, afinal, o core-business do clube e da SAD: a gestão do futebol. E, no entanto, tinha tudo para acertar: o crédito dos sócios, um FC Porto em crise, um director desportivo eficaz, um plantel consolidado e um treinador competente.
Hoje, perante a evidência do falhanço, resta-lhe uma de duas soluções: anunciar já eleições antecipadas, dando tempo a que apareçam alternativas credíveis (mas os nomes de que se fala não auguram nada de bom!), reservando-se a hipótese de ele próprio se recandidatar com uma lista e um programa convincentes; ou se aguenta no poder, anunciando eleições para Maio/Junho de 2009, corra a época como correr: se correr bem, é reeleito por aclamação; se correr mal, sai com dignidade e deu tempo a que surjam alternativas.
Decidir ficar pode ser uma decisão corajosa ou um acto de desespero. A coragem é boa conselheira, o desespero não. Se decidir, como já anunciou, manter-se à frente do barco, assumindo as suas responsabilidades, Vieira deveria propor Rui Costa para a administração com o pelouro do futebol, dando-lhe plenos poderes para despedir e nomear quem ele quiser na estrutura do clube, contratar o treinador e os jogadores da sua escolha, dentro de um orçamento previamente negociado; e escolher, se assim entender, alguém para lidar com o balneário e com a organização dos jogos (não o vejo a meter na ordem os antigos colegas), ficando ele com o lugar que foi o de Vieira no tempo de José Veiga, e respondendo apenas perante a SAD, pelo orçamento e pelos resultados.
Mas há uma terceira hipótese: a hipótese de haver um investidor que decida, à maneira inglesa, tomar conta do clube, o que poderia implicar uma alteração dos estatutos, perdendo o clube a maioria na SAD (mas a lei já a isso obriga), em benefício de um Benfica mais forte, como acontece com os clubes ingleses. Seria um momento de verdade para os sócios; mas seria, provavelmente, também, e por muito que nos custe, como custou aos sócios do Manchester, do Chelsea e do Liverpool, um momento de clarificação para o clube e um exemplo inovador no futebol português.
Mas, qualquer que seja a solução, o Benfica tem outra tarefa pela frente, e não menos importante: liderar um movimento para a transparência no futebol, apresentando propostas para revolucionar as instituições, os regulamentos e os quadros dirigentes; e elaborar um Livro Negro que mostre sem equívocos o que foram estes anos em que o país viveu em democracia e liberdade, e em que o futebol esteve nas mãos dos mais espertos e dos mais hábeis, favorecendo a batota no campo e nos bastidores e gerando o descrédito na opinião.
Só num quadro de legalidade, transparência e fair-play o Benfica poderá voltar a estar à altura da sua grandeza e do seu passado; só com competência, estabilidade e organização, que o mesmo é dizer, com liderança, a palavra "Vitória" voltará a ser mais do que o nome de uma águia, que hoje paira, melancólica, sobre o que terá que voltar a ser "o Inferno da Luz".
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