quinta-feira, 3 de fevereiro de 2005

Força e Direitos

Se alguma coisa a intervenção armada dos EUA no Iraque nos ensinou foi o facto, já quase histórico, de que as super-potências não são suficientes para dar segurança e estabilidade internacionais. O terrorismo veio para ficar e é um factor perturbador da paz e do desenvolvimento internacionais. Ou seja, a força do uso da força não protege por si só a manutenção e a construção da paz no mundo globalizado e é neste quadro, de incapacidade unilateral, que o Direito pode ter o seu campo de destaque na criação de espaços de união e de consenso. Os EUA já o sentiram. Por força dos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001, o Congresso norte-americano aprovou o USA Patriot Act, de 24 de Outubro de 2001. Um acto legislativo muito contestado, pois veio alterar regras que dizem respeito com determinadas liberdades e direitos civis e políticos, relacionados com o sigilo nas telecomunicações, a utilização de computadores, o sigilo bancário, o respeito pela intimidade da vida privada, a imigração e nacionalidade norte-americanas, direitos da família, entre outros.

É um sinal dos novos tempos, bem indicativo da forma como o mundo está preocupado com a segurança e a nova ordem internacionais.

Um dos grandes desafios com que o mundo e, sobretudo, os EUA têm que enfrentar é o equilíbrio entre acabar com o terrorismo ou a insegurança nacional/internacional e salvaguardar os direitos, liberdades e garantias adquiridas.

Ronald Dworkin defende que os cidadãos têm direitos que existem independentemente do reconhecimento legal. A questão é que a actual situação jurídica norte-americana, no que respeita à legalidade dos direitos civis e políticos, sofreu um retrocesso no domínio qualitativo dos direitos e liberdades fundamentais, em nome da «segurança» e, até, da própria «liberdade da nação». Onde está, assim, o limite da tolerância e da preservação da segurança (e da própria sociedade) nas medidas de polícia e criminais de combate, tomadas pela maioria, contra quem as quer derrubar?

Naturalmente que Dworkin sustenta a moral fundamentada como critério essencial para as preferências das minorias não serem esmagadas pelas da maioria, o que aliás concordo, todavia, a praxis política não se esgota na tensão entre legalidade e moralidade, sendo o actual circunstancialismo bélico e inseguro provas disso, quando a legitimidade dos actos não é feita sob a tutela de organizações internacionais ou quando os conceitos como o uso da força e de legítima defesa são interpretados, cada vez mais, de forma extensiva, entendimento o qual, refira-se, não afastamos como ultima ratio.

O sistema de protecção constitucional das liberdades fundamentais não tolera ideias avançadas como a perda de direitos fundamentais pela sua utilização abusiva. Trata-se da possibilidade de um cidadão poder vir a ser privado de alguns direitos quando deles abusar para combater a ordem fundamental livre e democrática e dos direitos fundamentais. Subjacente, está a antiga ideia de que não «deve haver liberdade para os inimigos da liberdade», ou, em linguagem mais bushiana, «estão connosco ou estão contra nós».

Esta concepção da liberdade e dos direitos fundamentais é importante, pois é aonde a América de hoje, julgo, pretende chegar, ou seja, à funcionalização dos direitos fundamentais: os direitos devem ser exercidos de forma teleologicamente vinculada (por exemplo, em prol da ordem livre, da segurança nacional ou da democracia). Tal concepção não vê na perda de direitos fundamentais a «morte cívica» do cidadão, o que pode trazer abusos de poder, sobretudo nos direitos criminais e processuais dos suspeitos e arguidos.

Em resumo, a história recente dos Estados Unidos, no que concerne à restrição das liberdades e garantias dos cidadãos, demonstra, em síntese, várias tendências neste domínio:
- A liberdade dos cidadãos existe contra o Estado, a democracia constrói-se a favor do cidadão;
- Democracia não é o mesmo que liberalismo;
- A de que maior democratização não implica necessariamente maior liberdade, por vezes, bem pelo contrário;
- O exercício do poder político obriga a uma gestão constante entre o poder político e os direitos individuais;
- A intolerância da tolerância poderá levar ao incremento de radicalismos e de acções governamentais restritivas das liberdades;
- A funcionalização dos direitos fundamentais (que esvazia o conteúdo intrínseco e nuclear do direito, per si) leva ao populismo e demagogismo políticos, ainda que sob a anuência da maioria popular.

Não querendo ser Fukuyamista, poder-se-à dizer que volta-se sempre à História. Afinal de contas, a força da maioria nunca foi, nem será, sinónimo de vitória de benfeitores.

Tendo sido a favor duma intervenção armada no Iraque (infelizmente, não como ela foi efectivamente feita), posso dizer que me deu especial prazer, e emoção, ver os iraquianos a votar e a notícia do nível de participação dos mesmos. Apesar de ser banal para nós, serve bem de exemplo para a jovem juventude de hoje saber dar valor e o preço que alguns pagam pela democracia. Sobretudo a portuguesa, visto que a democracia em Portugal está tão barata!

NCR

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