sábado, 26 de março de 2005

Sobre o comentário

Não sou contra o comentário feito por jornalistas, todavia, é essa a razão que me leva a escrever este post, pois começa a ser um caso sério de não pluralismo dos líderes de opinião pública e de falta de opinião habilitada o facto de a maioria dos comentadores provier da carreira jornalística. Não tem tanto que ver com as habilitações académicas ou a experiência do labor, o problema principal é que supostamente os jornalistas são aqueles que dão as notícias e não aqueles que, cumulativamente, as fazem e as comentam, ex officio, baseados em pressupostos subjectivos e pessoais sob pena de colisão com a liberdade de expressão e de separação de funções/competências nos meios de comunicação social.

Os jornalistas não devem ser comentadores no artigo da notícia que escrevem. Acho uma perversão da informação. Os jornalistas podem comentar notícias sim, mas não quando são os próprios que as escrevem. Doutra forma, chega-se ao cúmulo de não poder distinguir-se a notícia do comentário. Como poderá ser permitido ou legítimo, a um juiz, numa sentença, alterar os factos alegados pelas partes num processo judicial?! É curioso como chega a comentar-se os factos, antes de a notícia passar. Não roçarão estes casos, situações de manipulação ou influência (directa) na percepção e compreensão do espectador? Mutatis mutandis, imaginem um juiz a dar uma opinião sobre um caso concreto antes de outro juiz o julgar?

Os comentadores devem ser produtores de ideias analíticas, precursores nas análises reflexivas, confirmadores da memória histórica dos factos, renovadores na fórmula comunicativa de descrição dos assuntos objecto de comentário e análise. Mas poucos, raríssimos, o são.

Como acréscimo, os comentadores devem também ser cultos, independentes, heterodoxos, analíticos, intelectualmente honestos e, de preferência, claros na comunicação. Não se trata de possuírem ou criarem ideias novas, antes tentarem recriar, comprovar ou deconstruir ideias ou factos que visam comentar, depois de eles serem dados a conhecer ao público e desde que não sejam os próprios a tratarem jornalisticamente a notícia. Mais do que narradores, os comentadores devem ser explicadores e lembrar também as pré-compreensões da matéria comentada. Como pudessem fazer o cubo de Rubik de uma outra forma, ou mesmo terminá-lo, mas sem deixar de dizer que o cubo é um cubo e que é de Rubik!

Julgo que um dos maiores problemas que levanta esta temática é saber distinguir os limites e a diferença entre a figura do comentador (na quase totalidade são jornalistas) e a de articulista (maioritariamente jornalistas ou ex-jornalistas). Como as fronteiras estão nubladas, é natural que surjam problemas de pluralismo e de liberdade na transmissão da opinião.

A protagonização crescente dos comentadores nos meios de comunicação social não deixa de ter os seus perigos e inconvenientes, porquanto levada à (quase) exclusividade convida à preguiça do raciocínio, à limitação dos enquadramentos, à fixação de compreensões típicas de um olhar ‘jornalístico’ que, por natureza, não é criativo, inovador ou, mesmo, analítico, e muito menos com responsabilidades maiores na transmissão de saberes e de aprendizagens. Esta, pelo menos, não é a sua vocação. A vocação do jornalismo é, segundo a primeira norma do código deontológico do jornalista consagrado na 2.ª edição do “Livro de Estilo” do Jornal Público:

«1. O jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público

A protagonização dos comentadores-jornalistas acresce a ex officio limitação da deontologia profissional e do vínculo laboral, para além de não promover a opinião especializada ou académica. Sem esquecer que um comentário é uma opinião, todavia deve ser uma opinião habilitada, responsável, individualmente independente, imparcial e eticamente irrepreensível (sobretudo quando se trata de um jornalista!).

Outra finalidade do comentador no que respeita ao público, para além das narrativas opinativas e explicativas, é interrogar. Interrogar sobre aquilo que pensamos que sabemos e sobre aquilo que não pensamos, nem sabemos. É pouco, mas já seria excelente. Sócrates dizia que o saber provinha da pergunta, mas só depois dela ficaríamos a saber, ou seja, não há respostas sem perguntas e o conhecimento está na resposta, mesmo que seja negativa sobre o saber. Este entendimento tem toda a actualidade no mundo em que vivemos, pois cada vez mais conhecem-se as respostas sem ter havido qualquer esforço interrogativo de reflexão, isto é, não conhecemos a causa e o pincípio do que julgamos saber. O desnorte do nosso sentido de viver talvez resida aqui. Como dizia Pessoa, Pensar incomoda como andar à chuva. E aquele que pensa, ainda se arrisca a ser acusado de ter a mania que pensa. Eis o nosso admirável mundo novo.

NCR

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