quarta-feira, 2 de março de 2005

Matar é Matar! (III) – As Razões

Nesta terceira e última parte passemos aos argumentos. A minha posição nesta questão, como se calcula, é a de ser contra a pena de morte, sem excepções!
A pena de morte é o crime dos crimes. Porquê? Porque trata-se de um homicídio premeditado a sangue frio pelo guardião-mor da vida dos cidadãos, ou seja, pelo Estado, a quem compete zelar pelos direitos e liberdades das pessoas.
Para além disso, a pena de morte é discriminatória, desproporcionada e desumana.
É discriminatória sobretudo, porque favorece os cidadãos com maior poder económico e as maiorias étnicas, religiosas e políticas. Em muitos países esta asserção está desnecessariamente comprovada, pois como todos sabemos, em muitos países a pena de morte é utilizada como instrumento de repressão e supressão dos opositores raciais ou étnicos, políticos e religiosos. Nos E.U.A., por exemplo, 95% dos condenados à morte não podem pagar a um advogado privado e mais de 80% das condenações são executadas em pessoas de raça negra. Coincidência? Julgo que nem os mais racistas acreditariam nela.
Os estado-unidenses são pródigos nesta estatística de valores racialmente discriminatórios, tão antiga que remonta aos tempos da velha Confederação (estados do sul), arreigada ao «Bible belt», regra profundamente protestante por sinal. A sociologia moderna dominante, ao que sei, afirma mesmo que ela reflecte mais o racismo histórico da sociedade sulista norte-americana: um branco que mate um negro tem 4 vezes mais de risco de vir a ser condenado a morte que um negro que mate um branco. Os números demonstram-no: entre 1973 e 1995, um estudo provou que 40% dos processos analisados tinham erros jurídico-processuais, e outros 47% evidenciavam erros que judiciais que suscitavam dúvidas na justiça do veredicto. Só sobravam 13% de casos incólumes de violação à lei!
É desproporcionada, essencialmente, porque desadequada e manifestamente inexigível, quer nos inocentes, quer nos próprios criminosos. Nos inocentes, a probabilidade de erro judiciário é enorme, e aumenta a fabricação e manipulação das «provas» acarretando excessivo poder às polícias e forças de segurança. Nos criminosos, porque nada justifica que o Estado mate uma pessoa premeditadamente, a sangue-frio, com o intuito de prevenir mais crimes! E muitas vezes, crimes como o roubo, o adultério ou o sacrilégio e a blasfémia religiosa!
Consequentemente, é uma pena desumana, porque se traduz, precisamente, numa pena homicida, a cold blood, final e fatal, expurgatória de uma vida que em nada promove ou impõe uma sociedade sem crimes. É desumana também pelos seus métodos de consumação: injecção letal, mutilação corporal, por hemorragia em caso de decapitação, electrocussão, enforcamento, envenenamento, intoxicação por gás letal, entre outros, são algumas das práticas existentes nos 83 países que actualmente aplicam a pena de morte. Todavia, tem havido algumas evoluções (não me atrevo a chamar ‘progressos’) neste campo, por exemplo, em 2002, o Supremo tribunal Federal dos EUA proibiu a pena de morte a «retardados mentais», e em 2005, ontem aliás, declarando inconstitucional a lei que consagra a pena de morte a menores de 18 anos.

Historicamente, é raro verificar-se num país um retorno à pena de morte depois de a ter abolido. Direi mesmo que não conheço nenhum caso. Sendo assim, muito se questiona a validade e o sentido da consagração desta pena. Mas apesar de a Ciência, o Direito e a Realidade (estatística) provarem que tal acontece porque a abolição da pena de morte reduz a criminalidade violenta e é facto apaziguador da sociedade, no sentido de a tornar mais pacífica e de proporcionar uma consciência da dignidade da pessoa humana, porquê, então, ela subsistir?
Na resposta a esta questão podíamos falar de muitas razões e não-razões, como de demagogia, de lobbies, de intolerância, de fragilidade humana, de desconhecimento popular da realidade e das informações (muitas vezes manipuladas), de distinção de conceitos caros á filosofia (como justiça individual ou concreta vs. justiça colectiva ou geral, interesse privado vs. Interesse público, personalização vs. Objectividade), ou até de sentimentos de vingança ou de insegurança individualizados e generalizados. Como se vê por estes exemplos, podemos de falar ainda de muita coisa, porque esta é daquelas matérias que dividirá uma sociedade, infelizmente, até à nossa morte, como também o são o aborto, a eutanásia e as questões suscitadas pela bioética e a biotecnologia.
Por tudo aquilo que escrevi, não vou dizer que não quero influenciar ninguém, porque quero. E até o faço de forma desinteressada, pois como sabemos felizmente não existe pena de morte em Portugal. Mas preocupa-me o grau e as manifestações de intolerância que demonstram os meus alunos, amigos e demais interlocutores na discussão desta temática. Preocupam-me os «regressos medievais» e demais mundos demagógicos e populistas. Porque o humano acredita no que não vê e em muita coisa que é negada pela realidade e pela ciência, simultaneamente! Pode mesmo dizer-se como é isso possível acontecer no século XXI em países ditos civilizados?!
Se a pena de morte é ilegítima, falível, iníqua e ineficaz, como é possível defendê-la nesta era contemporânea, ou melhor, como é permissível a sua aplicação? Será a pena de morte um instinto animal? Será uma cedência emocional perante o nosso julgamento supostamente racional? Pode um sistema social e político baseado no primado do direito e da dignidade da pessoa humana aceitar a previsão legal da pena de morte? Será que não há uma alternativa de melhor remédio criminal e social, mais humana, justa e isónoma? Em Inglaterra, por exemplo, somente 1% dos condenados a prisão perpétua (life with parole) depois de libertados, cometeram uma segunda infracção criminal! Se a realidade não convence, nada convencerá «os penalistas da morte», porque na realidade o que os move é o argumento moralista da alegada justa vingança: aqueles que matam, roubam ou se opõem ao regime e religião dominantes merecem morrer, às mãos de toda a sociedade, como exemplo, como instrumento de política, como sinal do poder. Seja criança ou adulto, doente ou consciente.
A cólera é o sétimo pecado mortal. E não é por acaso que é o sétimo e o último.

Que a razão e o humanismo acompanhem sempre este debate.

NCR

Sem comentários: