sexta-feira, 19 de agosto de 2005

ESPUMAS XII



«Não somos, nem nunca seremos inteiramente livres. Vivemos e morremos fechados. A diferença é que a caixa onde vivemos é maior do que aquela onde normalmente nos finalizamos. O fio condutor de tudo isto é um fio de vidinha, ou uma vidinha de fio, que se sinaliza por curvas e termina numa eterna linha recta. Flatline em linguagem técnica de magistrado na matéria. Nada acabará por restar nesta vidinha pseudo sofisticada e civilizacional. Ao menos - e o menos é sempre difícil - pensar a nossa vidinha, enquanto civilizados, não é coisa pequena. O que é pequena é mesmo a nossa vidinha. Grande é a vida. Ela, ao contrário de nós, é nobre, eterna e omnipresente, seja na beleza da sua criação, na naturalidade da sua existência ou no abrigo de tantos seres. Mas estes são os vários significados da sua grandiosidade. Todavia, não são aqueles que demonstramos saber sobre ela, tendo em conta o que maioritariamente fazemos com esta nossa avançada vidinha. Mesmo acreditando que a felicidade não existe inteira, ou seja concebida apenas como momentos, sendo assim divisível, não valorizamos o que ela nos dá, a céu aberto, todos os dias, a qualquer um, do alto da sua generosa ubiquidade. Não temos remédio nem garantia, apenas nós e esperança. Temos algo incompleto, quase tudo, e queixamo-nos porque consideramos que isso é quase nada, que falta o essencial. É um ciclo vicioso. Julgamo-nos como um ponto equidistante de uma linha que principia e finda em nós próprios, com a agravante dessa vivência reduzir-nos ao nosso corpo e à nossa mente, e às respectivas rotinas. Como sair, então, deste colete humano, psicológico e artificial? Não saímos. Andamos com ele desde que nascemos, ficando cada vez mais apertado. Contudo, podemos desapertá-lo, desarmá-lo ou ignorá-lo. Quanto à nossa vidinha, não podemos dar-lhe muita importância, no sentido de nos limitarmos a ela. Só assim, parece-me, reconhecermos a valia da vida na nossa vidinha. Ver vida para além da vidinha é uma atitude, nada sobre-humana. Exige esforço, focalização e consciência de que o sentido da vida é feito de acção e de razão. Numa palavra, exige visão. O valor dela é alto, mas o preço de não a termos, a dor da sua ausência, o vazio que nos cobre quando não nos dignamos a recebê-la é bem maior. Carpe diem está para todos, no entanto a maior parte de todos não está para ele. Isto não é desculpa e muito menos justificação. A fuga para a desigualdade é ferramenta fácil e típica do ser humano na mecânica do alheamento. Se não têm todos, logo é iníqua, injusta e ilegítima. Isto é, serve para quase nada. Não temos desculpas nem justificações. Temos um curriculum e um futuro, todos eles gizados por nós. O problema, ou um grande problema, é que acreditar é viver e não o contrário. O aquário para um peixe, por muito grande que seja o aquário e por pouca dimensão possua o peixe, será sempre uma fatalidade a presença cerceadora das paredes de vidro. Como nós, nenhum ser vivo é suficientemente grande e poderoso para quebrar estas fronteiras de vidro. Mas nem todos confundem transparência com inexistência. Só não há fronteiras para as fronteiras do presente da nossa memória. É lá que moram os restos que a vidinha não esquece. Não sabemos, ou mal sabemos, mas a vidinha ainda é das poucas coisas valiosas que alcançamos. Pensemos em viver tudo o que podemos e esforcemo-nos em partilhá-lo com outros, mesmo que a nossa avaliação considere não ser grande coisa, e já será uma vidinha virada para a vida. Também existimos para sonhar, mas acima de tudo para realizar os nossos sonhos. Sonhar não é utopia, é um dia. Um dia basta para escrever um sonho na nossa vidinha. E o sonho quando se concretiza transforma a vidinha em vida, a nossa vida. É este um sentido de vida que conduz à felicidade? Não sabemos a resposta inteira. Podemos, na verdade, descobrir caminhos com sentido e com sentido de vida. Esta é uma grande liberdade e um pesado desafio contemporâneo que não se concretiza sem nós. A busca desse desígnio é profundamente humana, pelo que, na essência, a vidinha pode fazer muito por nós. Nós fazemos é pouco por ela.»

NCR

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