quinta-feira, 2 de junho de 2005

Serviço público

«Saber distinguir e privilegiar as questões de fundo relativamente ao conjuntural e pontual

Grande parte das intervenções aqui reunidas dão conta daquilo que tem sido uma das minhas preocupações essenciais nesta parte final do segundo mandato. Como se verá, insisto em chamar uma especial atenção para a necessidade de sabermos distinguir o essencial, que afecta estruturalmente o nosso destino colectivo, do acessório e meramente conjuntural que frequentemente nos distrai e nos afasta da solução dos problemas reais.
As dificuldades do tempo presente constituem de resto, em meu entender, razões acrescidas que nos obrigam a apurar uma percepção clara e permanente daquela distinção.
Participamos, como se sabe, num processo complexo de aprofundamento da integração europeia que nos convoca, tal como aos restantes povos da Europa, para um debate sério visando uma decisão ponderada e informada acerca das grandes questões do nosso destino comum. É desejável, a todos os títulos, que essa discussão se faça de forma serena e profunda, esforçando-nos para debater o que verdadeiramente está em causa e não deixando contaminar o debate europeu pelos temas nacionais e posições naturalmente diferentes que eles suscitam.
Ao mesmo tempo, tal como os nossos parceiros, sofremos os desafios de uma competição e de uma concorrência globais cada vez mais exigentes. Somos, nessa medida, obrigados a ganhos de produtividade e competitividade que exigem resultados imediatos e bem sucedidos nos domínios da racionalização económica, da qualificação pessoal e profissional, da educação, da actualização e da inovação tecnológica. Somos, por outro lado, obrigados a fazer este esforço sem precedentes num contexto de dificuldades económicas e financeiras bem conhecidas.
Ora, quando nos encontramos perante problemas tão sérios, mais se faz sentir a necessidade de nos concentrarmos naquilo que é verdadeiramente decisivo. Vivemos um tempo que nos exige uma definição precisa de prioridades e uma selecção criteriosa e partilhada de objectivos e opções políticas capazes de mobilizarem eficazmente as energias e recursos disponíveis. Cada vez é mais evidente que não temos margem para repetir equívocos, para adiar decisões ou para desperdiçar oportunidades.
Daí a insistência com que venho apelando à concentração e confluência de esforços naquilo que é essencial com a consequente desvalorização do pequeno conflito ou disputa, da notícia de primeira página que hoje consome a nossa atenção e de que amanhã já ninguém se lembra.
Com efeito, estes dois mandatos reforçaram em mim a convicção de que um dos maiores males de que enferma a nossa vida política é essa atracção aparentemente natural pelo episódico e conjuntural em detrimento do interesse por aquilo que verdadeiramente nos afecta enquanto povo. Nesse mesmo sentido, raramente antecipamos problemas e dificuldades e nos preparamos para elas. Habituámo-nos, ao invés, a limitar a intervenção política à redução de danos e à resolução da última dificuldade surgida, o que priva a acção política de alcance estratégico, esgotando-a e consumindo-a em reacções pontualizadas de conjuntura.
Porém, os grandes problemas económicos e sociais, bem como os temas mais estritamente políticos exigem visão estratégica e capacidade de pensar e agir sobre o médio prazo. De outra forma, a sua resolução pode ficar negativamente condicionada e afectada. As discussões presentemente em curso sobre a limitação dos mandatos e sobre os processos referendários ilustram eloquentemente a importância daquela necessidade e deste risco.
Num e noutro caso viemos a adiar a resolução dos problemas até um ponto em que se formou aparentemente um acordo alargado sobre a necessidade de os encarar. Porém, logo que se trata de decidir, a tendência é invariavelmente a de deixar contaminar a discussão dos temas de fundo e, consequentemente, a resolução dos problemas pelos interesses de conjuntura.
Se estas questões são suficientemente importantes para mobilizarem a nossa atenção a um ponto que, eventualmente, conduz à própria abertura de processos de revisão constitucional, então as respectivas discussão e decisão não deveriam ser negativamente condicionadas pelas preocupações com eventuais ganhos ou interesses pontuais ou de curto prazo.
A questão dos referendos é particularmente elucidativa a este respeito. Após um longo período em que a adequação do instituto aos parâmetros da democracia representativa foi, entre nós, muito controversa, a Constituição veio a acolher a possibilidade de realização de referendos nacionais sobre questões de interesse relevante, mas de acordo com condicionamentos e limites pormenorizadamente pré-estabelecidos na própria Constituição e na lei. Algumas dessas restrições vieram a revelar-se tão problemáticas que, pode dizer-se, temos passado tanto ou mais tempo a discutir procedimentos e regras do processo referendário do que a discutir o fundo das questões eventualmente sujeitas a referendo. A consciência de algumas destas dificuldades conduziu precisamente à abertura do presente processo de revisão extraordinária da Constituição.
Como se sabe, manifestei em diferentes ocasiões ao longo dos meus mandatos as maiores reservas à facilidade com que, entre nós, se recorre à revisão da Constituição como panaceia para resolver quaisquer males, aparentes ou reais, sem atender às necessidades de estabilidade e consenso em torno do texto fundamental de qualquer Estado democrático. Daí que, mesmo quando a revisão constitucional se revela absolutamente indispensável, ela deva preocupar-se com a resolução global e duradoura das questões de fundo que lhe deram origem, sob pena de uma banalização a todos os títulos inconveniente dos processos de revisão e do próprio texto constitucional.
Foi para essa necessidade de aproveitamento do actual processo de revisão que chamei a atenção em recente mensagem que dirigi à Assembleia da República a propósito da impossibilidade de realização do referendo que me foi proposto. Como aí dizia: "... as dificuldades objectivas... que tão evidentemente se manifestaram colocam-nos perante a necessidade de repensarmos a adequação do conjunto dos prazos e limites circunstanciais, temporais e materiais que, entre nós, envolvem a realização dos referendos. Tendo sido desencadeado um processo de revisão constitucional extraordinária, será essa uma oportunidade excelente para correcção prévia dos requisitos e condicionamentos que se têm revelado mais problemáticos ou desajustados".
É só por tal razão que, com todo o respeito pela autonomia da instituição parlamentar, me sinto agora autorizado a voltar ao tema e mais ainda porque, como se sabe, o Presidente da República tem um papel decisivo na convocação dos referendos.
É que a discussão actualmente em curso, bem como os próprios projectos de revisão apresentados, levam-me a temer que, como tantas vezes tem acontecido, o presente processo de revisão extraordinária seja mais uma oportunidade não aproveitada para confrontarmos as questões de fundo deixando prevalecer, mais uma vez, o meramente conjuntural e pontual.
A nossa experiência de referendos nacionais não tem sido muito bem sucedida. Para além de uma participação popular pouco significativa nos dois referendos já realizados, com a consequente ausência da sua vinculatividade jurídica, tivemos entretanto duas iniciativas rejeitadas por inconstitucionalidade e mais uma, a mais recente, por manifesta inoportunidade de calendário. Foi-se percebendo, perante tais evidências, que estes insucessos não são devidos a meros acasos, mas que na sua raiz estão, em grande medida, insuficiências e até contradições do actual enquadramento constitucional e legal do regime do referendo. Limito-me a mencionar sintetizadamente algumas de entre as mais susceptíveis de reconhecimento geral.
O regime é compreensivelmente exigente em termos da participação requerida para conferir vinculatividade jurídica ao referendo, mas permite que uma qualquer participação, por mais reduzida que seja, assegure à respectiva decisão uma vinculatividade política efectiva e de duração praticamente indeterminada. O exemplo mais flagrante é o do referendo sobre interrupção voluntária da gravidez em que, com uma reduzida participação eleitoral (cerca de 30 por cento do eleitorado), as posições em disputa obtiveram resultados muito próximos (a vitória do "não" traduziu-se numa vantagem mínima, de cerca de 50 mil votos). Todavia, mesmo nestes termos, uma opinião juridicamente não vinculativa manifestada por apenas 15 por cento do eleitorado pôde capturar indefinidamente a decisão da Assembleia da República sobre o fundo da questão.
Outra manifesta contradição é a que respeita à (im)possibilidade de referendar convenções internacionais de que o Estado português seja parte. Designadamente, a actual impossibilidade de sujeitar a referendo o próprio acto de aprovação/ratificação obriga a uma selecção das perguntas a colocar ao eleitorado que, designadamente nos tratados mais complexos, é sempre, na melhor das hipóteses, arbitrária e, na pior, inconstitucional ou até democraticamente inaceitável. Para além disso, uma decisão referendária sobre questões meramente particulares integrantes de uma convenção internacional não é susceptível de ter consequências lineares, transparentes e adequadas pela simples razão que, na maior parte dos casos, o Estado português, e qualquer que seja a decisão do eleitorado sobre as perguntas particulares que lhe foram colocadas, só pode ratificar ou não ratificar o tratado na sua globalidade.
Por último, ficaram também bem evidenciadas as dificuldades objectivas que os actuais limites circunstanciais e temporais impõem à realização de referendos. A sucessão de actos eleitorais e de dificuldades de calendário pode determinar, como ainda agora aconteceu, que, no quadro legislativo em vigor, uma proposta de referendo aprovada pela Assembleia da República fique objectivamente impossibilitada de se efectivar durante quase um ano...
Considero, neste sentido, e como recentemente manifestei à Assembleia da República, que a revisão constitucional em curso seria a oportunidade adequada para confrontar o essencial destas questões.
Em primeiro lugar, seria natural e exigível que um processo de revisão expressamente dirigido à apreciação deste tema se não limitasse a "resolver" o problema particular e específico do referendo sobre este tratado constitucional europeu, tanto mais quanto as dificuldades suscitadas a propósito são comuns a esse e a todos os referendos que respeitem a convenções internacionais.
Não resolver agora o problema global, isto é, o da especificidade que afecta todas as convenções internacionais, terá inevitavelmente como consequência que, sem qualquer vantagem no presente, a Assembleia da República terá, num futuro mais ou menos próximo, a propósito deste ou doutro tratado europeu ou de qualquer outra convenção internacional, de voltar à questão, com os inevitáveis custos e inconvenientes de impossibilidade prática de realizar o referendo ou de, em alternativa, ter de abrir novo processo de revisão constitucional.
Em segundo lugar, e da mesma forma, reconhecidas e evidentes que são as dificuldades objectivas suscitadas pelos limites temporais e circunstanciais actualmente em vigor, dificilmente se compreende que as alterações necessárias sejam inviabilizadas, não por serem consideradas inconvenientes, mas apenas porque o desaparecimento de tais obstáculos permitiria a eventual realização de um novo referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez a curto prazo.
Estes são alguns exemplos actuais, e, por isso mesmo, de consequências negativas ainda evitáveis, desta nossa permanente tendência para protelarmos o confronto com as questões de fundo, mesmo quando as dificuldades e as experiências mais recentes nos exigem uma visão estratégica e uma capacidade de antecipação e consequente resolução dos problemas.
Os desafios e exigências - da integração europeia, da racionalização da administração pública, da competitividade, da qualificação, da educação- que, enquanto povo, se nos impõem tão drasticamente no tempo presente não admitem a condescendência para com a prevalência do acessório e do conjuntural. É tempo, para todos nós, de uma nova atitude e de uma nova forma de intervenção política mais consentâneas com os ditames de uma democracia estável e madura.»

Jorge Sampaio
Lisboa, 1 de Junho de 2005, do Prefácio ao livro Portugueses, volume VIII, em publicação

1 comentário:

Pedro Soares Lourenço disse...

Palavras muito certas as de Sampaio.
Devem ser ouvidas com atenção.
Para tal, haja ouvidos que as oiçam!