sábado, 4 de março de 2006

ESPUMAS XXIV

Passamos uma vida inteira a procurar alguém que amamos. Depois, desejamos mais do que tudo que essa pessoa nos ame. A seguir, difícil é viver esse amor uma vida inteira. Uma vida inteira ninguém sabe o que é. Quanto dura uma vida inteira? Qual o tamanho da nossa vida? Qual o tamanho desse amor? Nem sabemos do que ele é feito, quanto mais saber o seu tamanho. Pouca gente sabe - apesar de cada vez serem mais -, o amor é dor. E sofrer é coisa que este mundo não nos ensina. A euforia hedonista é o limite e o objectivo das pululantes vidas que rodeiam a essência da nossa socialidade. Viver um amor exige conhecermos muito bem a nós próprios. As nossas fraquezas, os nossos defeitos, as nossas incapacidades. Ninguém consegue amar outrém verdadeiramente sem pôr em causa o seu próprio sentido de vida. E mesmo que esse amor dure uma vida inteira, mesmo que esse alguém nunca tenha posto a si própria a pergunta: quem sou eu?, esse suposto amor não passa de uma ilusão. É compaixão, muito popular no mundo antigo. O mundo actual está para o amor como a maioria dos católicos está para a Bíblia: muito poucos a leram. E é necessário para ser-se católico? Não. Mas como se pode viver o catolicismo autenticamente sem ler o seu livro fundador? Assim somos nós perante o amor. Talvez ir ao fundo dele seja um risco, envolva um esforço, implique sermos sérios com o que somos e desejamos, ou dizemos que somos ou desejamos. Mas, paradoxalmente, qual um milagre ou uma visão de uma qualquer sobrenaturalidade, um sinal desse amor ocorre quando o vimos: trememos de forma notória, o coração bate à fórmula um, os lábios conflituam-se e deles saem muitas poucas palavras, às vezes nenhumas. A linguagem corporal não engana ninguém e muito menos o seu autor. Por muito que se discurse em sentido contrário, por muitas gavetas criadas para fechar de vez a pessoa avistada, por enorme trabalho de auto-convencimento e mentalização que a vida não deixa de ser feliz sem essa pessoa, por muito que se gele o coração, o corpo não engana. Os olhos não enganam. Porque o amor só não é possível, entre gente que se ama, por quem simplesmente tem medo de si próprio. O medo que resulta de algo que exige destruir os nossos confortáveis mitos e construir os pesados pilares de uma relação. Afinal, construir é suor. É sacrifício. É dor. Um dos paradoxos do amor deriva deste quadro: raramente optamos por ficar com ele, seja por ignorância, seja por racionalidade. É mais fácil fazermos dele um mal amor ou um amor impossível. Mas impossível também é evitar demonstrá-lo. Quem foge de si próprio, foge toda a vida. E provavelmente será infeliz. Os finais felizes só os anjos sabem. São feitos por eles. Não se nasce anjo e ninguém ensina a ser um. Passamos a vida a encontrar o nosso anjo, mas depois não temos vida para ele. É o mundo com o qual andamos todos ocupados. Incluindo namoros, casamentos e amizades coloridas. Quem pensar que está livre deste cenário amoroso, sugiro que desça a terra. Sugestão de quem sempre amou e sempre foi amado.

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