quarta-feira, 19 de janeiro de 2005

Como a democracia pode pôr em risco a liberdade dos cidadãos?

Antes de tudo, e como a pergunta pressupõe, democracia não significa liberdade e liberdade não significa democracia, como há algum tempo explicou Norberto Bobbio, sobretudo na sua obra «Liberalismo e Democracia».

Nesse sentido, o regime democrático tem algumas formas de colidir com a liberdade dos cidadãos, nomeadamente através do poder e da influência políticas, com incidência nas pessoas, nos processos e nas regras do jogo político. Ou seja, o risco que a liberdade dos cidadãos corre é inversamente proporcional à hegemonia abusadora da maioria, da diminuição de poder de veto das minorias, da crescente ausência de mecanismos efectivos de controlo da constitucionalidade ou da legalidade, na prossecução obsessiva da justiça e da segurança na sociedade e na crença de que esta é o fundamento da existência de direitos fundamentais.

Assim, o regime democrático pode pôr em risco a liberdade dos cidadãos de diversos modos, mormente sempre que absolutiza algum princípio ou direito ou valor, com excepção, na minha opinião, do valor da dignidade da pessoa humana, entendido no seu alcance mínimo.

A liberdade dos cidadãos é, portanto, um valor principal, fundamental e prioritário, pois sem ele não se pode gozar de outros direitos que lhe estão associados: a liberdade de expressão, do pensamento, da criação intelectual ou literária, de ensinar, de aprender, entre outros. Todavia, a Era que enfrentamos, ou melhor, num futuro próximo verdadeiramente temos que enfrentar, é a da responsabilidade. A Era de direitos, que norteou toda a construção democrática do século XX, cada vez mais não pode ser sustentada sem o cumprimento dos deveres cívicos e políticos. Porque em rigor, e se formos sérios, verificamos que é na Política onde há menos corrupção, é a Política a área humana que é mais escrutinada pelos cidadãos, é a Política que reflecte a ambição e o talento do seu povo. Não olhem para o lado, como já referi em posts anteriores no Ad libitum, só podemos caminhar pelos nossos próprios pés. O resto é leveza, não é liberdade.

Invocando a raiz liberal do conceito, a liberdade dos cidadãos tem uma vocação de limitação do poder político (que se fez, historicamente –desde sobretudo 1787, data da sua primeira consagração constitucional – por duas garantias: a separação de poderes e a garantia de direitos e liberdades fundamentais ao cidadão). De alguma forma, contrapõe-se a quem exerce o poder político, pois uma das vicissitudes da acção e decisão políticas é a constante tensão entre o exercício do poder e a garantia da liberdade e direitos. Uma confluência tão fatal, como decisiva na ordenação social, como bem descreveu Dworkin.

Portanto, a tomada de medidas políticas restritivas para a defesa da liberdade, a segurança das pessoas, a prevenção de ataques externos, a salvaguarda das instituições nacionais, entre outros exemplos, são argumentos que a opinião pública mundial já ouviu falar mas nem todos ainda com eles se defrontou, com excepção dos americanos, espanhóis e ingleses (restringido o âmbito aos estados ocidentais).

Por outro lado, o problema de as minorias conseguirem raramente mudar opções maioritárias, o modo de contagem dessa majoração, a falta de proporcionalidade nos sistemas electivos e de participação institucional prejudica a legitimidade dos processos e a distribuição de poder.

Na verdade, a democracia lida precisamente com esse problema, o problema da distribuição de poder, ao contrário do liberalismo que preocupa-se em limitar, apenas, o poder.

É por isso que, como defende Fareed Zakaria (“O Futuro da Liberdade - A Democracia Iliberal”), mais democracia não significa (mais) liberdade; é por isso também que o regime democrático pode pôr em risco a liberdade dos cidadãos. Quem julga que para voltarmos a situações autoritárias do passado, é necessário viver numa não-democracia aconselho à reflexão dessa pré-compreensão. Os mecanismos cerceadores da liberdade são outros, são novos e, muitas vezes, imperceptíveis. Cerceiam o nosso conhecimento e poder (v. g. a escolha de livros nas montras das grandes superfícies, os resultados das buscas nos sistemas de busca como o google, a opção dos programas e respectivos convidados no debate sobre determinada matéria), as nossas opções de bens ou serviços (desde o vestuário ou manipulação da exposição de produtos alimentares às exigências de aquisição de determinado produto ou frequentar certo ‘ambiente’ para usufruto do serviço) e a própria restrição à ascensão político-partidária por cidadãos independentes e à tendência para a entropia no reconhecimento das boas ideias e boas acções, por parte de cidadãos e políticos, no sistema democrático, entre outros (inúmeros) factores.

No dia 20 de Fevereiro vamos ter a liberdade de votar, mas esse acto também configura uma exigência da democracia. O acto de não votar porque não concorda com nenhum programa político-partidário ou simpatiza com algum candidato é um acto de cobardia política. Os votos válidos (conceito enganador, porque respeita à postura no quadrado branco e não à validade do acto de votar) não são os únicos votos expressos. Votar é ser livre. Pode parecer pouco, mas experimentem pensar num regime sem voto. Será que Bobbio estava enganado?

NCR

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