sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

A propósito da disciplina de voto

Indisciplina democrática

Se as democracias sempre foram testadas pela reacção dos seus cidadãos, o mesmo se pode dizer dos parlamentos face ao comportamento dos seus deputados. Entre os ingleses, no berço da democracia parlamentar, é comum a percepção de que «In the House you can say what you like but you do as you are told». Esta descrição impopular do parlamento inglês foi, ultimamente, reforçada precisamente com um Governo trabalhista, através do recém-renunciado primeiro-ministro Tony Blair. A questão poderia colocar-se no domínio da democracia interna parlamentar, mas o que é intrigante é a disciplina de voto dos deputados ser, normalmente, tanto maior quanto a inclinação para a esquerda do espectro ideológico dos membros do parlamento. Um ponto que, com certeza, mereceria uma reflexão maior e mais profunda. Em Portugal, a apreciação popular não parece ser mais favorável, senão mesmo mais gravosa, porquanto a actividade e os problemas parlamentares culminam, grosso modo, ou na ignorância e indiferença da opinião pública em geral, e no esforço por vezes frustrante, mas glorificante, de alguns dos seus representantes. Apesar de tudo, a jovem instituição parlamentar democrática nacional não justifica a antonomásia e tal ambiente crescente prejudica, e muito, o debate político, a informação e responsabilização públicas e a função da expressão representativa dos portugueses, que, nos termos da nossa Constituição, segue o princípio do mandato não imperativo: os deputados representam todo o território nacional (artigo 152.º) e são livres no exercício do seu mandato (artigo 155.º). Mas se o princípio está no Direito, como se sabe, a Ciência Política trata de o colocar na ordem social devida, a ordem dos partidos políticos... na ordem dos grupos parlamentares. A completar esta “oposição” interdisciplinar, verifica-se a inexistência de facto (porque a Constituição permite) de círculos eleitorais uninominais, que nos comunica, e pretende convencer, uma razão legal justificativa do estado actual da liberdade de voto partidário-parlamentar em Portugal. Algo casuística, mas reveladora da sua natureza e significação. O processo de definição do voto do grupo parlamentar socialista sobre os Projectos de Lei 206/X (BE) e 218/X (PEV), consagrando o princípio da universalidade e da igualdade no direito do casamento, não engrandeceu o parlamento, o grupo parlamentar e o partido socialista. Assim foi no dia 10 de Outubro e assim será no dia em que ela surgir na próxima legislatura. Percebe-se a vontade maior subjacente à sua imposição de orientação de voto do grupo parlamentar, sobretudo num contexto de ano predecessor ao das eleições legislativas, mas, mesmo numa colisão da liberdade de voto parlamentar (sobre matérias não sufragadas popularmente) e os interesses estratégicos partidários (onde se encontra, é certo, o instrumento institucional de acesso à representação política), todavia, não se deveria dar prevalência a estes últimos. E não se trata de defender uma concepção liberal da representação política, que se traduz, no essencial, por uma incapacidade dos grupos parlamentares controlarem as posições individuais e o sufrágio legislativo dos respectivos deputados; nem tão pouco se advoga uma representação política típica do Estado de legalidade socialista, caracteristicamente anti-democrática, onde todos os deputados são tomados pela estrutura partidária como uma massa una, unívoca e indivisível. Tampouco, ainda, se defende um meio-termo, pois rejeita-se qualquer elemento jurídico ou fáctico pertencente a esta última concepção. Trata-se, na nossa opinião, de um grupo parlamentar garantir a democraticidade interna e ser arauto das liberdades políticas fundamentais do sistema político nacional, em nome, não dos seus interesses ou estratégias políticas de oportunidade, mas para cumprir com o desígnio nacional de um partido que, nos piores e nos melhores momentos democráticos, não cede os princípios constitucionais do estado democrático aos dogmas errantes do estado de partidos.


(Outubro 2008)

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