terça-feira, 6 de dezembro de 2005

ESPUMAS XXI


Luís Brites

Há imagens que não valem apenas mais do que mil palavras, há imagens que valem mais que mil dias! Quase sempre que vejo uma árvore, um jardim e um banco recordo-me do filme Notting Hill, de Roger Michell, um filme grande em entretenimento e pequeno em qualidade geral. Estes três elementos naturais de um cenário apaixonado constituem uma simbiose romântica quase perfeita entre a Natureza e o Homem. O primeiro dá a terra e o fruto, o segundo constrói o banco e compõe-o numa sinfonia arrebatadora. É, assim, possível existir uma união construtiva, pacífica e frutífera entre o mundo natural e o ser humano. Mais difícil, contudo, por regra deveras mais difícil, é a arte de duas pessoas que se amam, estarem e viverem juntas; duas situações diferentes, mas que se complementam em termos de um projecto duradouro de relacionamento. Vem este post a propósito de uma história que li hoje, bem demonstrativa dessa espinhosa ambição:

Certa vez, na terra dos Sioux, o guerreiro Touro Bravo e a bela Nuvem Azul chegaram de mãos dadas à tenda do velho feiticeiro da tribo e lhe pediram:
- Nós nos amamos e vamos nos casar. Mas nos amamos tanto que queremos um conselho que nos garanta ficar sempre juntos, que nos assegure estar um ao lado do outro até a morte. Há algo que possamos fazer?
E o velho, emocionado ao vê-los tão jovens, tão apaixonados e tão ansiosos por uma palavra, disse:
- Há o que possa ser feito, ainda que sejam tarefas muito difíceis. Você, Nuvem Azul, deve escalar o monte ao norte da aldeia apenas com uma rede, caçar o falcão mais vigoroso e trazê-lo aqui, com vida, até o terceiro dia depois da lua cheia. E você, Touro Bravo, deve escalar a montanha do trono; lá em cima, encontrará a mais brava de todas as águias. Somente com uma rede deverá apanhá-la, trazendo-a para mim viva!
Os jovens se abraçaram com ternura e logo partiram para cumprir a missão.
No dia estabelecido, na frente da tenda do feiticeiro, os dois esperavam com as aves.
O velho tirou-as dos sacos e constatou que eram verdadeiramente formosos exemplares dos animais que ele tinha pedido.
- E agora, o que faremos? - perguntaram os jovens.
- Peguem as aves e amarrem uma à outra pelos pés com essas fitas de couro. Quando estiverem amarradas, soltem-nas para que voem livres.
Eles fizeram o que lhes foi ordenado e soltaram os pássaros. A águia e o falcão tentaram voar, mas conseguiram apenas saltar pelo terreno. Minutos depois, irritadas pela impossibilidade do voo, as aves arremessaram-se uma contra a outra, bicando-se até se machucar.
Então o velho disse:
- Jamais esqueçam o que estão vendo, esse é o meu conselho. Vocês são como a águia e o falcão. Se estiverem amarrados um ao outro, ainda que por amor, não só viverão arrastando-se como também, cedo ou tarde, começarão a machucar um ao outro. Se quiserem que o amor entre vocês perdure, voem juntos, mas jamais amarrados.


Desta lenda uma lição óbvia se retira: sem liberdade, não há amor duradouro. A liberdade é a plataforma para a felicidade e a convivência amorosas. Não é por acaso que a prisão é um castigo maior e a máxima das penas vividas pelo ser humano. Por sua vez, a liberdade é condição de qualidade, bem-estar comum e progresso humanos há muito provada pela História e comprovada pelas democracias liberais contemporâneas. Portanto, para o ser humano e para a sociedade, a liberdade é fundamental e já é adquirida nesse sentido. Todavia, e se ela é certa e perene entre o Homem e a Natureza, entre o Homem e a sociedade, entre humanos é um problema difícil e constante, quer em reconhecê-lo, quer em superá-lo. Como em qualquer jardim, difícil é povoar os seus bancos.
Qual é então o segredo do amor eterno? Não há segredos, ou fórmulas, ou poções mágicas, nem leis gerais ou definitivas no amor, apenas, dois princípios únicos, universais e globais nas relações humanas. O primeiro é que sem coração, não há união. Ou seja, sem verdade, não há liberdade. Estar numa relação de modo diferente é viver preso a uma ilusão, uma imagem, uma comodidade, uma espécie de relação de suporte virtual.
No último filme da trilogia Matrix, o cenário final devolvido à realidade situa-se num jardim, junto a um rio, cheio de árvores e relva e de chilrear matinal de aves despertas. Na outra margem, ao fundo, a sociedade iluminada pelo Sol, o elemento natural da esperança. E as últimas palavras do filme, pertencentes ao Oráculo sentado num banco de jardim, reportam-se ao epílogo desconhecido: não sabia, mas acreditava. Eu acreditava. Este é o segundo princípio. O amor é uma oportunidade de sermos livres e somos livres quando acreditamos nele. Sem crença nenhum amor tem futuro. Compreende-se, assim, a dificuldade de viver o amor para sempre. Exige excessivos valores a uma humanidade cuja realidade teima em desvirtuar.

NCR

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